LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os esquecidos

“São espantosas as coisas que as pessoas esquecem nos trens e nos vestiários”, dizia James Joyce. De fato, pude constatar essa verdade recentemente, quando fui encaminhada a um setor de achados e perdidos, em busca de um guarda-chuva que tinha deixado para trás. Ao ver meu espanto diante da imensa quantidade de objetos ali amontoados, o funcionário me brindou com uma visita ao setor.

Enquanto eu andava no meio de caixas e pacotes de diversos tamanhos, ouvia a relação de pertences comumente largados nas dependências do estabelecimento. Óculos, canetas, lanternas, livros, brinquedos, alianças, suspensórios, bolsas, chaves de carro ou vidrinhos com remédios eram itens triviais. Também – com maior raridade – apareciam perucas, suspensórios, gravatas ou dentaduras.

“Uma vez” – cochichou o funcionário – “encontraram um peixinho dentro de um aquário, no banheiro do museu.” Meu Deus! O que aconteceu? – perguntei, temerosa. Mas a história tinha final feliz. Durante semanas, a zeladora pensou que se tratasse de um mimo decorativo e tomou para si a tarefa de alimentar o peixe e trocar sua água. Quando enfim soube que o bichinho era um extravio, pensou em levá-lo para casa. Entretanto, como não podia carregar o aquário dentro do ônibus, resolveu mantê-lo no banheiro – com a permissão de um ofício expedido pela diretoria, é claro... Assim, ainda hoje o peixinho vive no museu.

Há autores que esquecem originais literários dentro de táxis (existe mesmo uma tradição nessa prática). E faz um tempo conheci um fotógrafo que perdeu um rolo de filmes preciosíssimo, conforme afirmava: eram imagens que o teriam lançado em ascensão mundial. Foi uma fatalidade, comentei – mas também podia ser uma mentira. Atribuir um valor absurdo a uma obra perdida não parece difícil, visto que a comprovação do talento (ou da falta dele) torna-se inviável. Quem irá, portanto, contradizer o orgulho do artista?

À parte esses casos, conheço gente sinceramente distraída, capaz de esquecer diplomas ou passaporte em assentos de cinema. O tipo de pessoa que perde bilhetes de amor não por desprezo, e deixa cair dinheiro dos bolsos, de preferência em escadarias de repartições públicas. Todos esses desatentos desenvolvem um traço peculiar: quando abordados ou advertidos por quem lhes encontra o objeto, nunca agradecem.

Na verdade, a reação não é grosseria. O distraído é um ingênuo: nem percebeu a perda, não passou pela angústia do vazio, com a memória refazendo percursos e possibilidades de ter deixado o utensílio aqui ou ali. Desfez-se daquilo como quem lança fora uma casca que já não serve – e, de certa maneira, esse desapego (embora às vezes traga consequências catastróficas ou, no mínimo, pouco práticas) é uma lição de leveza. Afinal, para caminhar bem pela vida é preciso carregar somente a bagagem essencial. E quem saberá realmente o que é ou não indispensável?


Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião do jornal O Povo, em 24/11/2010)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Festival de Cinema de Brasília


A partir de amanhã estarei em Brasília, na companhia de Ana e Nick, queridos amigos. O Festival de Cinema promete e, para curti-lo adequadamente, viajo com o máximo despojamento possível - ou seja: sem trambolhos eletrônicos. Longe do notebook, dependerei de lan houses e estarei semi-incomunicável por um tempinho. Assim, caros navegadores-leitores, este blog hibernará (mas não mais do já antes hibernou, e sem motivos anunciados). Prometo voltar com muitas novidades em filmes e também com fotos e ideias para histórias, quem sabe...
Se alguém puder na quarta-feira, dia 24, acessar o site do jornal O Povo, provavelmente lá encontrará uma crônica minha, na coluna Opinião. Aqui ela será postada com atraso.

De volta ao mar, Moacyr


Ontem faleceu Moacyr C. Lopes, autor cearense radicado no Rio, famoso pelo seu romance A ostra e o vento. Na última Bienal, tive a oportunidade de conhecê-lo, e sinto-me feliz por saber que ele pôde receber a homenagem que nossa revista, Para Mamíferos, lhe dedicou em sua segunda edição.
Certamente Moacyr ainda tinha muita história para nos contar - mas o que fazer, se o tempo é implacável? O consolo é que a literatura deixa alguns rastros...

domingo, 21 de novembro de 2010

Mister Punch


Sobre minhas leituras de ontem, anunciadas aqui, devo dizer que a HQ Elvis decepcionou: é tosca, superficial e mal traduzida em muitos momentos. Em compensação, Mr. Punch é uma obra primorosa: o maravilhoso roteiro de Neil Gaiman me fez mergulhar nessa tradição de marionetes que vem da época vitoriana (o tal Mr. Punch é inspirado na commedia dell'arte, no polichinelo - e isso me lembra que já, já tenho de estudar italiano, para a aula de amanhã...). As ilustrações de Dave McKeath são lindas e criativas; fazem do álbum uma verdadeira exposição de arte!

sábado, 20 de novembro de 2010

Bons motivos



Hoje eu tinha uma boa razão para sair à noite, mas em compensação tenho vários motivos para ficar em casa. Primeiro, aqui estão, ao meu lado, dois convites para uma leitura que farei em breve: as HQs Elvis e Mr. Punch - uma ótima pedida para selar um sábado que começou bem, com a aula na Oficina de Quadrinhos (e novamente, senti a experiência de molhar os dedos nesse território de pesquisa, onde um dia mergulharei com profundidade). Depois, tenho também à espera algumas atrações musicais. Ontem o amado me presenteou com o Clube da Esquina, pensando na trilha mais adequada para a preparação de uma viagem que em breve farei: pela primeira vez, BH! Creio que não conhecerei nem um grama da riqueza mineira - mas isso será um aquecimento para o ano que vem, quiçá (e eu também não podia deixar de receber o prêmio do Governo de Minas pessoalmente: os organizadores foram tão gentis e solícitos!)...
Além das melodias de Milton e Lô, tenho ainda duas novidades que recebi em correspondência do meu precioso amigo Moa: Roberta Sá e Mariana Aydar. Na mesma encomenda-surpresa, ganhei O livro das pequenas infidelidades, de Edgar Telles Ribeiro, e Hóspede secreto, de Miguel Sanches Neto: são contos que devem me acompanhar nos hiatos dessa viagem - sim, pois não viajo com notebook, mas sem livros não consigo jamais embarcar.
Agora, chega de planos: vou dar início à minha noite-aconchego. Preparo uma rede na varanda, convido os bichanos para perto e... voilà! Isso é felicidade.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Palestra sobre Rachel

Palestra
Amanhã, (dia 20 de novembro) às 14h
Tema: Centenário Rachel de Queiroz
Palestrantes: Fernanda Coutinho & Tércia Montenegro
Unidade: Shopping Varanda Mall
Endereço: Av. Dom Luís, 1010 - Meireles - Fortaleza/CE
Local: Auditório


Neste sábado, a Livraria Cultura celebrará o centenário da autora Rachel de Queiroz trazendo as autoras cearenses Fernanda Coutinho, autora de 'Rachel de Queiroz: uma escrita no tempo', e Tércia Montenegro, autora de 'Rachel: o mundo por escrito', para dialogarem sobre a influência da autora e das suas obras na literatura brasileira e cearense. O encontro será mediado por Regina Ribeiro, editora da Fundação Demócrito Rocha.

Fonte: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/eventos/resenha.asp?nevento=19938&sid=71823522112826496609052346&k5=1C7DEFF6&uid=

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O que fazer com um bom vinho


Recebi esta imagem pela internet; infelizmente, não tenho como fornecer os créditos ao fotógrafo incrível, que capturou o tal instante decisivo. Aos meus leitores, fica esta dica, sobre como se divertir depois que é aberta uma garrafa de vinho...KKK

sábado, 13 de novembro de 2010

O idiota - uma novela teatral


Um espetáculo que promete ser maravilhoso: O idiota, da Mundana Companhia. Estreia neste domingo, às 18h, no Teatro José de Alencar. A peça terá 7 horas de duração, com dois intervalos, e vai circular por vários espaços do teatro. E na quarta-feira, dia 17, às 15h, estarei lá, debatendo no foyer do TJA - juntamente com a professora de russo da USP, Elena Vassina - sobre a obra de Dostoiévski. O tema da nossa conversa vai ser: Dostoiévski, contemporâneo de ninguém. Oportunidade incrível para mergulhar mais uma vez no encantador e trágico universo eslavo...

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Belezuras










A pedido dos meus leitores gatófilos, que andaram reclamando da ausência prolongada, neste blog, de fotos de charmosos felinos, coloco esta imagem, com quatro filhotinhos lindos!

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Violência no muro

Existem muitas formas de expressar ódio ou rancor, desde o simples berro solitário até o ataque físico ou verbal. Ora, a escrita também vira suporte para as emoções do violento. É possível aliviar-se de maus sentimentos pelo desabafo gráfico, pondo em letra verdades cruas ou infâmias consoladoras.

Foi nessa catarse que pensei, quando semanas atrás encontrei um muro transformado pelo ódio escrito. Ali estavam ofensas contra determinado indivíduo, citado nominalmente. Os desenhos e frases, cheios da escatologia mais criativa que se possa imaginar, adotavam o formato de um recado ou bilhete, trazendo uma espécie de assinatura sugestiva. O pseudônimo usado era “O teu pesadelo”.

Para mim, mergulhada num tráfego em paralisia, a experiência foi singular. A cada metro que o carro avançava, eu tinha um acréscimo na leitura daquela correspondência pública, pois o muro era longo e estava inteiramente preenchido com letras crispadas. Em determinado trecho, outra personagem – agora citada por nome feminino – também passava a ser xingada, e concluí que aquela era uma vingança amorosa.

O tal sujeito certamente tinha abandonado uma mulher para ficar com outra, e a rejeitada vingava-se com os desaforos na parede. Mas ali não se escrevera com tinta, que forma palavras líquidas e fáceis. O ódio da mulher foi cavado, no feitio de uma ameaça rupestre, de gesto tão violento como primitivo. Tanta má energia acumulada me deu um nervosismo, mas logo sosseguei, pensando no cão que ladra e não morde. Provavelmente o traidor sofreria apenas a humilhação pública; não seria morto e esquartejado, junto com sua amante – embora “o pesadelo” a certa altura prometesse isso.

Claro que não dá para se sentir seguro diante de sugestões de vingança, e quem se arrebata a ponto de expor o ódio com extremos deve esperar as devidas represálias. No caso do tal muro, fica óbvio que o ofendido pode ir à justiça, contra difamação ou coisa do tipo. Mas não deixo de pensar que a mulher traída foi a mais prejudicada: foi quem mais se envenenou, na febre do descontrole.

Imagino sua figura franzina, tentando compensar fragilidades na escrita ríspida e larga. Calculo o tempo que gastou para preencher toda a extensão do muro, no vandalismo certamente ocorrido de madrugada. De lanterna numa das mãos, canivete na outra, aplicou-se nos palavrões e desenhos supostamente obscenos, mas com um traço tão infantil. Devia chorar durante a tarefa, e mesmo depois não conseguiu dormir, à espera – de quê? De uma reação do homem. Queria, no íntimo, uma explosão parecida com a dela, algo que continuasse inflamando seus motivos para odiar – embora, no fundo, sua alma implorasse por trégua.

Se o antigo companheiro for esperto, adotará como revanche o desprezo. Ele garante um cozimento demorado das emoções ruins. O desprezado passa anos remoendo episódios mal resolvidos, enquanto a outra pessoa já superou tudo, ou tudo esqueceu. Dizem os antigos, inclusive, que esse tipo de violência é o mais cruel. Sobre isso, eu não opino, mas creio que –sendo tão silencioso e discreto – o desprezo é o único modo de praticar violência com elegância.

Tércia Montenegro (artigo publicado na coluna Opinião do jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/11/10/noticiaopiniaojornal,2062282/violencia-no-muro.shtml)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

7° Encontro Interdisciplinar de Estudos Literários

Dentro da programação deste evento, promovido pelo Mestrado em Letras da UFC, vou participar no dia 11 (próxima quinta-feira), das 10h30 às 12h, numa mesa-redonda intitulada A criação literária na contemporaneidade. Vai ser muito bom trocar ideias com Nilto Maciel e Rodrigues Marques, com a mediação do prof. Cid Ottoni. Estão todos convidados! A mesa-redonda vai acontecer no Auditório da Biblioteca do CH, na UFC.

sábado, 6 de novembro de 2010

O chamado


Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco aprendi duas palavras aparentemente banais mas que acabaram tendo tanta importância no meu ofício, a palavra liberdade e a palavra justiça. Mas foi no terreno dos esportes que aprendi a disciplina, segredo do modesto equilíbrio desta escritora neste indisciplinado país. Sim, foram aquelas aulas de esgrima que eu amava tanto e ao mesmo tempo, temia, foram elas que me ensinaram a dura lição do desafio de exigir rapidez de raciocínio a alguém assim de reações demoradas, lentas, Uma tartaruga! ouvi minha mãe gracejar. Contudo, como me sentia feliz naquele uniforme todo branco, a túnica fechada e o coração de feltro vermelho pregado no lado esquerdo do peito. O professor provocava e investia enérgico nos treinos, máscara e florete. Em guarda! ele ordenava e eu tentando disfarçar a natural lerdeza, tinha que ser sagaz e me confundia em meio das ordens, Se defenda depressa que agora você se descobriu, olha o peito desguarnecido! Eu reagia tarde demais porque ele avançava implacável até tocar com a ponta do florete no meu coração exposto.

Ficou a lição de cobrar de mim mesma uma energia que também é malícia, aquela força acumulada lá no fundo e que hoje eu chamo de minhas reservas florestais, enfraquecidas pelo desmatamento. Nesse tempo eu já falava em vocação e que vem a ser a vontade de fazer isto e não aquela outra coisa eventualmente mais proveitosa e até mais fácil: vocare, aprendi nas aulas de latim. O chamado. Obedecer a esse chamado é uma destinação, mas não a condenação que implica em perda de liberdade, na perda entraria o amargor, o que transformaria o escritor numa esponja de fel. Obedecer à vocação seria simplesmente exercer o ofício da paixão, era o que me ocorria quando diante da pequena mesa abria o meu estojo com as canetas, escolhia a pena preferida, molhava a pena no tinteiro e começava a escrever as minhas histórias. Mas tomando cuidado para não sujar os dedos da mão direita, ih! olha aí as nódoas de tinta nos dedos, esfregar o mata-borrão melhorava mas cuidado com a blusa!

Quando me perguntavam o que eu queria ser respondia, Uma escritora. Mas não falava em vocação, tinha pudor em assumir o ofício, falar em vocação não poderia parecer arrogância com um toque até de soberba? Só mais tarde é que fui compreendendo, na vocação não está incluído o sucesso, ah! tantas vocações fulgurantes e a obra na maior obscuridade. O silêncio, ninguém leu? ninguém viu. Melhor se tiver repercussão mas na realidade o que importa é obedecer ao impulso. O chamado. Nenhuma preocupação com os penachos da vaidade mas prosseguir o trabalho com paciência, o aprendizado da paciência.

Não sei como será a vida de um escritor de outras terras, outras gentes mas sei da vida desta escritora neste país, testemunha deste tempo e desta sociedade. Pisando na realidade do analfabetismo e da miséria. Passei muito tempo participando do que chamo de verdadeira cruzada, ia a universidades, centros de cultura, bibliotecas e repetindo sempre, O dia em que tivermos mais creches e mais escolas teremos menos hospitais e menos cadeias. Adiantou? - alguém pode perguntar. Pelo visto, não adiantou mas respondo com Camões, Estou em paz com a minha guerra.

Uma guerra dura, sim, afinal escrevemos em português, língua desconhecida, ai de nós! embora o nosso estilo ou modo seja no charmoso feitio brasileiro. O poeta Olavo Bilac, já naquele tempo escreveu estes versos sem ilusões, Última flor do Lácio, inculta e bela/ És, a um tempo, esplendor e sepultura. Olha aí, uma verdade que me parece terrível, esplendor e sepultura, foi o que ele disse. Ainda bem que acrescentou em seguida: Amo-te assim, desconhecida e obscura. Pois participo dessa declaração de amor que inclui uma luta que me parece, às vezes, a própria luta de boxe. Por acaso vi na televisão dois homens se atracando e se separando, se atracando e se separando. Sim, o escritor e a palavra na luta que Carlos Drummond de Andrade achava que era uma luta vã. O boxeur lá na tela se agarra ao adversário para não cair, o assessor quase joga a toalha mas o boxeur resiste tão empenhado, vertendo sangue (o pensamento verte sangue) mas resistindo.

Apesar de tudo, a esperança. Disse um dia que se tivesse uma bandeira essa bandeira teria duas cores, o verde da esperança (a única cor que amadurece) e o vermelho na outra metade, a cor da paixão com as suas cintilações de cólera.

Amo o sonho. A invenção. Escrever é difícil, sim, aquele duro corpo-a-corpo com a palavra mas assim que entro no imaginário, na fantasia me sinto bem porque essa é a zona do mistério, a criação literária é um mistério.

Alguns dos meus textos nasceram de uma simples frase ou de uma imagem, algo que ouvi (ou apenas vi) e retive na memória, essa incompreensível faculdade da memória e sem a qual eu não poderia pronunciar o meu próprio nome, escreveu Santo Agostinho.

Outros contos (ou romances) nasceram de algum sonho, enfim, a maior parte dos meus trabalhos deve ter origem lá nos emaranhados do inconsciente - zona vaga e imprecisa como o fundo do mar. Impossível determinar as fronteiras do criador e da criação, os limites do imaginário e do real. Minha obra tem um certo travo de amargor? Creio que não, anoiteço às vezes, como toda gente mas de repente espero pela manhã com seu bíblico grão de acaso, de loucura. E de imprevisto.

Escrevi no livro A disciplina do amor que o escritor no Brasil é uma espécie em extinção mas vejo hoje que a espécie em processo de extinção é o leitor. Em cada esquina agora tem um novo editor com os escritores num delírio de lançamentos, sim, um verdadeiro porre de livros. E por onde anda o leitor fugidio, hein?... Li outro dia num noticiário que um esquartejador confesso dispensou o advogado porque queria mesmo ser preso para poder escrever as suas memórias na paz do presídio.

Em Salvador vi num antiquário a imagem de um anjo de botas vermelhas, manto azul esvoaçante e levando na mão direita um archote. Longo tempo fiquei olhando o belo anjo de olhar doce mas firme, empunhando aquela tocha acesa, a chama subindo em ondulações douradas. Um Anjo Tocheiro? Um Anjo Tocheiro que eu gostaria de ter hoje para iluminar o meu caminho.

Lygia Fagundes Telles

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Meninuras

Ainda não recebi impressa a edição nº50 da revista Inteligência, onde saiu o meu conto "Serpentina", mas pude agorinha acessá-la pelo site, e achei a diagramação linda e maravilhosa. É possível abrir o arquivo em http://www.insightnet.com.br/inteligencia/50/
Vale a pena conferir a revista toda, cheia de artigos interessantes...

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Os blogs e os diários

Sempre tive diários, embora nunca os preencha diariamente. Em vez dos “modelos fixos”, com data e fase da lua, uso cadernos pautados. Assim, quando quero escrever, não fico aprisionada pelo espaço imutável de uma folha para cada dia: garanto total liberdade ao assunto em questão. Protegido pela atmosfera de intimidade, o texto corre solto, insistindo nuns pontos e ignorando outros, torcendo os fatos até... Tudo aqui é permitido!

Em qualquer outra escrita, feita para ser publicada ou divulgada de algum modo, existe a fiscalização, guiada pela expectativa do leitor. Num diário, nascido para ser guardado a chave ou escondido sob o colchão, isso não acontece. Pode-se exercer a sinceridade plena, a insanidade criativa ou a opinião inflexível. Essa falta de controle é absurdamente confortável: cria a ocasião em que o texto se torna puro ato, sem consequências. Se não há leitor, não há reações nem reprimendas. Não há urgência de desfazer enganos ou preservar conceitos. Nada existe depois da palavra, nada que a conserte ou ultrapasse. A escrita do diário é imperiosa e exclusiva; nasce ali e ali se acaba.

Óbvio que o mercado editorial ocasionalmente se encarrega de publicar diários – mas hoje não estou me referindo a esse caso. Meu tema é o diário íntimo, tão indevassável quanto o próprio pensamento, em contraste com o blog.

Quando esse gênero digital surgiu, houve tentativas de explicá-lo através de comparações com um diário. Um blog também podia ser escrito um pouco a cada dia, e podia tratar de assuntos privados, memórias e desabafos. Mas logo ficou clara a diferença entre os dois tipos de texto: um blog não é um diário virtualizado. A presença de um público leitor, com capacidade para se irradiar pelo mundo inteiro, interfere em muitas características. O gesto catártico e secreto desapareceu; surgem as velhas preocupações com autoimagem. O autor de um blog fatalmente pensa: “O que estou postando interessa? Vai agradar?” Ele sabe que existe, por trás de algum computador do mundo, um leitor que recebe aquilo – e, por mais que isso seja estimulante (porque toda plateia o é), pode resultar empobrecedor.

Quem escreve somente para ser lido acaba por fazer de si próprio um juízo muito equivocado. Na autenticidade, no estado bruto que não precisa de resposta, ninguém melhora ideias, busca completa coerência ou boas emoções. É por isso que um diário favorece mais o autoconhecimento do que um blog: olha-se apenas para si, o outro não interessa.

Nestes tempos de falta de privacidade, um lugar de solidão vira oásis. Um blog pode ser útil e estabelecer contatos, mas jamais terá a força de um diário feito ao modo arcaico. É sobre estes aspectos que eu converso logo mais às 19h30, em palestra na livraria Cultura. Quer debater a respeito? Compareça!

(Publicado hoje no Vida & Arte. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/vida-e-arte/2010/11/03/noticiavidaeartejornal,2059348/os-blogs-e-os-diarios.shtml)