LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Ainda sobre sapatos

A crônica que publiquei há quinze dias, neste jornal, foi tema de conversa em certo ambiente da boemia cearense. Certamente o assunto não teria vindo à baila se eu não estivesse presente, pois dissertar sobre sapatos não parece ser coisa comum ao repertório masculino. Entretanto, como eu tinha feito uma aparição surpresa no tal barzinho, os amigos fizeram essa homenagem, de comentar a crônica e até desenvolvê-la.

“É possível identificar a personalidade de alguém pelo calçado”: era o que me dizia um colega, na hora em que todos atingiam a terceira etapa etílica e se tornavam súbitos sábios. “Sapatilhas românticas não costumam ser usadas por mulheres de estilo vampiresco” – revelou outro – “Essas jamais abandonam o salto-agulha, arma de mil utilidades, que usam, por exemplo, para palitar os dentes no escuro de um toillete, ou para semelhante uso por baixo das longas unhas esmaltadas. Ocasionalmente, os saltos podem transformar-se em punhais, principalmente dentro de uma alcova em que reine o ciúme. Então, dificilmente alguém desconfia do rastro de gotículas... Talvez apenas um velho sapateiro suspire, acostumado a encontrar nas virolas um vestígio de sangue.”

“Mas sandálias havaianas costumam passear por todos os pés em veraneio, sem discriminação”, disse eu. “Porém” – interrompeu um amigo – “apenas os dotados de um perfil malandro ou, para sermos mais sutis, um jeito relaxado, gostam de usá-las todos os dias, a qualquer hora. Nada contra tais usuários! Ao contrário, estes são os da minha simpatia” – continuou ele – “pois demonstram o amor à liberdade e ao conforto.”

“Tênis também passam sensação equivalente” – interferiu alguém. A resposta: “Depende. Conforme o modelo ou o estilo, podem ter a suavidade de um chinelo ou pesar como cimento sobre esquis...” Naquela altura, aproveitei para comentar que sapatos de escritório me parecem sempre antipáticos, com suas pontas agudas, um jeito de jacaré. Ficam ali, em cores neutras e sóbrias, incapazes de tamborilar distraídos: é que, por dentro, trazem dedos tensos, esmagados entre a palmilha e o cadarço.

Ninguém escutou aquelas considerações finais. Estavam todos em novo assunto, que (admiti) era mais apropriado ao ambiente. Eu tivera cinco minutos de prestígio, lançando o mote de um debate; agora, era a vez dos velhos e queridos temas: literatura, fofoca, piadas.

Só por curiosidade, lancei um olhar para debaixo das mesinhas de plástico. Ali, por entre garrafas vazias, unidas no feitio de buquês de vidro, estavam os pés de todos: pares em diversas posições e tamanhos – mas unânimes, àquela hora, em se despir dos calçados que traziam. Inclusive eu tinha me libertado das sandálias e pisava com displicência sobre elas.


Tércia Montenegro (crônica publicada hoje na coluna Opinião do jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/03/30/noticiaopiniaojornal,2119395/ainda-sobre-sapatos.shtml)

terça-feira, 29 de março de 2011

Sofia blasée


Decididamente, Maria Antonieta deve ter sido uma exceção na filmografia da Sofia Coppola. Quando não é salva por um argumento histórico (que consegue, de modo interessante, trabalhar num feitio pop), ela derrapa na monotonia - por que será? A contemporaneidade é tão inútil assim, que os protagonistas de suas histórias sempre se mostram perdidos em dramas-clichês? Neste último domingo, fui ver Em algum lugar, apenas para dividir suspiros de tédio com uma plateia no dilema fico-ou-levanto. O enredo dá agonia de tão desgastado: o velho tema do sujeito podre de rico que esquece as coisas mais essenciais, como família, amor verdadeiro etc. A abordagem é igualmente óbvia, com intermináveis câmeras paradas, contando os minutos de vida que o personagem joga fora - e os espectadores também!
Apenas uma cena vale em todo esse lugar-comum: a bela dança no gelo que a atriz-mirim, filha do protagonista, faz no início do filme. O resto é tristemente desnecessário.

sábado, 26 de março de 2011

O canto das horas na Folha do Meio


Amigos,

Minha crônica "O canto das horas" foi publicada no jornal Folha do Meio Ambiente. O belo trabalho do Silvestre Gorgulho revela o idealizador do relógio que motivou esse meu texto. Para saber detalhes, veja o link http://www.folhadomeio.com.br/publix/fma/folha/2011/03/ponto217.html

quinta-feira, 24 de março de 2011

Revista Kalinka

Uma ótima dica aos que amam a arte e a cultura eslava: a revista Kalinka (http://www.kalinka.com.br/index.php) traz entrevistas sobre a literatura russa contemporânea e traduções confiáveis, além de indicar outros lugares virtuais de grande interesse.

terça-feira, 22 de março de 2011

Day-off



Não, não me venham com obrigações no dia de hoje... Às terças e quintas, eu funciono no modo lento.

domingo, 20 de março de 2011

Cópia fiel, Brassaï & Brasiliana














Neste fim-de-semana, pude me deliciar com algumas amostras de ótima arte. Entrei por acaso no cinema do Dragão do Mar para ver Cópia fiel. Estava sem nenhuma recomendação, sem resenha lida, nada. Pois esse filme de Abbas Kiarostami me encantou por muitos motivos: a linda paisagem toscana, o plurilinguismo perpassado de ironias e o jogo de duplicidades que se percebe não apenas no argumento em torno de arte autêntica ou da sua reprodução - a esperteza ambígua da câmera faz com que o espectador se extasie com alguns "achados" de perspectiva.
E como é bom assistir a uma história inteligente de vez em quando, algo que lide com diálogos sobre a estética, mas sem nenhum pedantismo! Ao contrário, o filme é leve e engraçado.
Antes da sessão, porém, eu já me encontrava embevecida. No espaço cultural da Unifor, meu primeiro objetivo eram as fotografias do Brassaï, dessa Paris dos anos 30: um retrato dos pavimentos noturnos, das construções desertas, dos solitários que se confundem com os postes ou se infiltram nos "inferninhos" (e quase se pode sentir o bafo adocicado das matronas, com um erotismo mumificado nas feições, com um olhar sempre severo diante de suas discípulas, cocottes de aspecto ingênuo, apesar da nudez). Depois dessa exposição, conferi também as peças da mostra Brasiliana - e estava achando tudo muito bom, pelo valor histórico e artístico (sobretudo do Rugendas, que nunca tinha antes visto ao vivo), mas fiquei realmente em êxtase quando entrei na sala2. Ali estavam primeiras edições de muitos livros, autógrafos, páginas com erros célebres de impressão (se serve de consolo saber que desde sempre as gráficas brasileiras eram descuidadas...), obras de parceria incrível entre autor e ilustrador... Foi a melhor parte, ao meu ver.

quinta-feira, 17 de março de 2011

quarta-feira, 16 de março de 2011

Sobre reinos e sapatos

Antigamente, as princesas perdiam o sapatinho de cristal numa apressada fuga à meia-noite – e apressados eram nossos olhos sobre as páginas. A leitura fazia esquecer que, ao contrário da personagem, tínhamos de calçar as famigeradas botas ortopédicas. Quem viveu a infância nos anos 80 sabe do que falo: a obsessão por eliminar joanetes e construir arcos nos pés fazia com que as meninas desde cedo fossem ao balé para fins anatômicos. Andar nas pontas era exercício obrigatório e – como se não bastassem as unhas encravadas que iriam nos perseguir vida afora, junto com palmilhas e demais apetrechos – havia as botas. Numa era que conhecia o “show”da Xuxa, nem mesmo os coloridos coturnos das paquitas disfarçavam o padrão opressor daquela moda.

Muitos anos depois, posso dizer que nunca aderi ao estilo country por motivos traumáticos, mas atravessei a adolescência sonhando com um baile de vestidos esvoaçantes e calçados delicados, da textura de uma nuvem. Bem no princípio da fase em que os hormônios começam a pipocar, soube que minha família executava uma espécie de introdução da mulher na vida adulta. O ritual consistia em ensinar à jovem – às vésperas de seu décimo quarto aniversário – como andar de salto alto. Vi minha irmã equilibrar-se com dois livros em cima da cabeça, usando o modelo-agulha de minha mãe. Depois, acompanhei duas primas cumprirem o mesmo ritual. Havia tropeços, pés virados, mas com algumas tentativas a garota conseguia andar de um jeito espontâneo, sem deixar os livros caírem.

Para a minha data, foram convidados vários familiares. Depois do trajeto no corredor de casa, haveria um bolo e a entrega do presente – os sapatos brancos e delicados com os quais eu tanto sonhara. Mas as fatalidades sempre ameaçam ocasiões desse tipo, e poucas semanas antes do dia eu levei uma de minhas incontáveis quedas, rompendo um ligamento no tornozelo. O desfile foi cancelado, e quando a fisioterapia me deu alta havia passado tanto tempo que todo mundo perdeu o gosto.

Nunca consegui me equilibrar direito com salto alto. Quando me queixo, invejando amigas que atravessam calçadas de pedras pontudas, recebo um displicente: “Ah, mas você é alta!” O conto não diz se Cinderela usava saltos, nem se precisava disso pela pouca estatura. De qualquer modo, os príncipes encantados já não perseguem a princesa que calça um número mínimo, em modelo de cristal. Aliás, príncipes hoje são os homens que nos descalçam e sabem que o amor começa pelos pés, com uma relaxante massagem...


Tércia Montenegro (crônica publicada hoje na coluna Opinião, do jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/03/16/noticiaopiniaojornal,2113758/sobre-reinos-e-sapatos.shtml)

terça-feira, 15 de março de 2011

Adélio Sarro

Acabo de voltar do Centro Cultural Dragão do Mar: o jornal anunciava espetáculo do grupo Clowns de Shakespeare no Sesc Iracema, numa sessão às 15h30. Infelizmente, eu ainda não me acostumei com esse "jeitinho" brasileiro de anunciar horários errados ou desmarcar sessões na última hora - quase nunca telefono para confirmar, antes de sair de casa. O resultado foi uma viagem perdida, mas nem tanto, porque ao menos tive a chance de ver por lá uma exposição da qual não tinha ouvido falar, mas que me encantou muitíssimo. Os quadros de Adélio Sarro estão numa mostra até o dia 3 de abril, dentro de um projeto de acessibilidade para deficientes visuais. Todas as pinturas favorecem o tato, porque ressaltam diversas texturas e contornos, e ainda há a tradução em braile (bem eficaz, sem aquela pose hermética de algumas pseudocuradorias). É não apenas uma iniciativa interessante, mas ultrapassa uma preocupação integrativa, porque os quadros são mesmo muito belos, e vale a pena tocá-los - algo que até então, para mim, foi um gesto proibido nas artes visuais.

domingo, 13 de março de 2011

Alívio

Uma foto para começar bem a semana, apesar de tantas notícias trágicas pelo mundo... Foi retirada da internet, não consegui saber qual o autor.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Polônia em música e cinema

Para conhecer um pouco da Polônia através da música e do cinema. Falando em Chopin, também remeto à literatura (por causa de Georges Sand... mas aí são outras nacionalidades).

quarta-feira, 9 de março de 2011

Macedonio Fernández


Estive lendo o Museu do Romance da Eterna e desta incrível obra extraio algumas passagens singulares. É recomendável ler cada uma e depois pôr-se a meditar sobre o componente irônico ou sábio (e talvez um se confunda com o outro):

"É indubitável que as coisas não começam; ou não começam quando são inventadas. Ou o mundo foi inventado antigo."

"O suicídio fez glorioso algum escritor medíocre (...). Porém mais precauções tomei contra o verdadeiro suicídio, que é viver depois de fracassar. Corrigir é quase todo o Sucesso, é o que faz algo genial. Corrigir, corrigir é outro grande Poder. (...) O suicídio não é corrigível."

"Assim, pois, à medida que escrevo, indago e espero fatos, da mesma forma que o leitor."

"E ele também iria embora com tal velocidade como se ir embora veloz fosse mais ir embora."

"Desde que sou autor conto com inveja o público das batidas. Às vezes sonho que o romance teve em certas passagens tal aglomeração de leitores que obstruíam o andamento da trama com risco de que os transes e catástrofes do interior do livro aparecessem em sua dianteira, como os atropelados."

"Quem experimenta por um momento o estado de crença de não existir e depois volta ao estado de crença de existir compreenderá para sempre que todo o conteúdo da verbalização ou noção de 'não ser' é a crença de não ser. (...) não se pode crer que não se existe, sem existir. Em suma: o existir é igualmente frequentado tanto pela crença do não existir quanto pela crença do existir."

"Todo personagem existe pela metade, pois nunca foi apresentado um do qual metade ou mais o autor não tomou emprestado de pessoas 'de vida'. Por isso há em todo personagem uma incomodidade sutil e uma agitação no 'ser' de personagem, como andam pelo mundo alguns humanos que um romancista usou parcialmente para personagem e que sentem uma incomodidade no 'ser' de vida. Algo deles está em romance, fantasiado em páginas escritas, e na verdade não se pode decidir onde estão mais.
Todos os personagens estão ligados ao sonhar ser que é sua propriedade, inacessível aos viventes, único material genuíno de Arte. Ser personagem é sonhar ser real."

"(...) os dois sentimentos que definem o Viajante de qualidade são a faculdade e o desejo de esquecer e o desejo de ser esquecido. O magnífico Esquecedor, completado com esta última faculdade de indiferença a ser esquecido e ainda com a valentia e soberba de querer que a imagem dele morra na mente dos outros, morte mais temida que a pessoa talvez porque todos sentimos que não há morte pessoal. A morte que há nos esquecimentos é a que nos levou ao erro de crer na morte pessoal. Mas essa crença é fragilíssima, por isso fazemos muito mais por não ser esquecidos que por não morrer."

"O consagrado futuro literário não acredita em, nem estima, outra posteridade a não ser a noite para cada dia, não terá sentido a urgência que sofriam antes os autores de escrever logo para ter mais posteridade julgadora: com a veleidade alcançada hoje pela posteridade o artista sobrevive a ela e no dia seguinte sabe se deve ou não escrever melhor ou se já o fez tão bem que deve conter-se na perfeição de escrever. Ou se já não lhe resta nada além da carreira literária mais difícil, a de leitor. A facilidade atual de escrever faz a escassez do legível e até suprimiu a injuriosa necessidade de que haja leitores: escreve-se por fruição de arte e no máximo para conhecer a opinião da crítica."

"(...) cada um sabe com toda a profundidade duas ou três verdades complexas, mas seus contatos de vida são mil aspectos mais, de modo que deixamos quase todas as partes de nossa vida às escuras (...). E assim vivemos em constante surpresa; quase tudo no inesperado."

"A loucura em arte é uma negação realista da arte realista. (...) Eu não crio personagens loucos, eu crio leitura louca, e precisamente com o fim de convencer por arte, não por verdade."

"(...) meus personagens são todos ligeiríssimos; no instante em que deixo de escrever, eles deixam de fazer; se eu não trabalho, fica tudo parado. (...) Outra vez me procuraram ao longo do Romance porque havia deixado Dom Luciano enfiando um braço na manga do sobretudo e ele já não aguentava as cãibras dessa postura. Quem mais se queixou foi o Presidente, pois interrompi redigi-lo quando ia soprar o fósforo com que acabava de acender seu cigarro, e passou a tarde sem fumar e se queimando."

"O leitor que não lê meu romance se não o souber todo antes, é o meu leitor, esse é artista (...): só aquele não busca uma solução é o leitor artista."

sexta-feira, 4 de março de 2011

Carnaval

Nos próximos dias, estarei em recesso tecnológico, numa viagem anticarnavalesca de intenção hedonística e artística. Na bagagem, ótimos vinhos e chocolates, a melhor câmera fotográfica e O duelo, do Tchekhov.
Espero voltar revigorada, na quarta-feira seguinte. Desejo similares prazeres aos navegantes deste blog!

quarta-feira, 2 de março de 2011

O canto das horas

Já percebi que quanto maior a suavidade do tema, mais difícil capturá-lo por escrito. Assim, faz algum tempo que penso numa crônica específica, mas evito o instante de criá-la, como se a tentativa adiada instalasse um tipo de prazer, uma delícia de saber que a paisagem está lá, com todas as suas belezas e tentações, mas ainda não é o momento de encará-la. Ou talvez parte do sentimento seja receio de não corresponder ao assunto, não achar estratégia para dizê-lo. A delicadeza escapa das palavras, recusa-se à matéria gráfica – é algo que vive no etéreo, como a música, as nuvens ou os sonhos.

Ora, o tema em questão é justamente sonoro e inefável. Mas não se concentra num artista ou obra particular. Ao contrário, espalha-se por muitos cantos, muitas aves dispostas num rodízio mágico. Estou falando de um relógio, presente que ganhei em Brasília, do Silvestre Gorgulho – amigo que conheci através da querida Ana Miranda. É um objeto circular, com desenhos de pássaros correspondendo aos números. A cada hora, ouve-se por alguns segundos um canto típico, seja do uirapuru, do galo-de-campina, do curió ou de tantos outros bichos que jamais entrariam por minha janela e agora, milagrosamente, povoam minha rotina.

Lembro quando voltei da viagem e achei o lugar ideal para o relógio. Fiquei como criança, contemplando os desenhos curiosos – o penacho do quero-quero, a plumagem da juruva – enquanto esperava que os ponteiros se aproximassem. Em minutos, o corrupião cantou, marcando o meio-dia, e a cozinha se encheu com o trinado do hino nacional. Meus gatos correram por todos os lados, procurando a presa invisível por debaixo das cadeiras ou em cima dos móveis. Demorou até que eles percebessem que os pássaros moravam dentro do relógio. Os piados, assovios e gorjeios eram tão vivos que de fato os animais pareciam estar ali. Houve até uma vez em que o relógio ficou mudo, “saltando” o registro de um dos pássaros e, antes que eu trocasse as pilhas, cheguei a pensar se de fato um dos bichos não tinha sumido, ou fora engolido por um dos gatos – hipótese absurda... mas nem tanto, se pensamos que se tratava de um sabiá, dentro de uma casa em que reina a ficção.

Hoje, depois de meses de convívio com o relógio cantante, posso dizer que fiz as pazes com esta categoria de objetos. Já não penso nos relógios como algemas torturantes ou antipáticos lembretes de obrigação e pressa. Os pássaros recordam que o tempo existe na natureza muito antes de ser distorcido pela vida urbana; é por isso que o meu relógio silencia, à noite. Deve ter um sensor que desliga, quando não há luz – mas prefiro pensar que as aves se aninham num abrigo imaginário, dentro das engrenagens. Em algum lugar do país, elas de fato dormem, naquele momento; e apesar de que no dia seguinte eu as ouvirei novamente, de hora em hora, o melhor de tudo é saber que nenhuma delas está de fato ali, presa por uma gaiola.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje na coluna Opinião, do jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/03/02/noticiaopiniaojornal,2108837/o-canto-das-horas.shtml)