LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O livro dos beijos

Amigos, se puderem leiam minha crônica abaixo, publicada hoje no jornal O Povo e disponível também no portal http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/08/31/noticiaopiniaojornal,2289864/o-livro-dos-beijos.shtml


O LIVRO DOS BEIJOS

            Quando estive em Florença, comprei O pequeno livro dos beijos. A edição, em formato de bolso, era tão compacta, que temi que pudesse comprometer a qualidade – pois livros de imagens são feitos para virarem álbuns grandes e fartos, em que se possam ver detalhes. Mas aquele volume de capa vermelha era portátil como um segredo, e as fotos correspondiam perfeitamente à atmosfera íntima que se cria em curtos espaços.
            Em cada página, o retrato de um beijo apaixonado. Logo na abertura, o clique de Edouard Boubard mostra um casal etéreo diante de um muro desgastado, cuja escuridão camufla o corpo do homem, que num abraço arrebatado levanta a companheira. Cartier-Bresson, mais adiante, fotografa um par francês de rosto colado, num café, com o cãozinho a espreitar aquele gesto. E depois temos uma dupla à beira do Sena, as cabeças escondidas, juntas no anseio de trocar o fôlego.
            Há abraços que lembram tango – pois o bom beijo nunca é dado sem enlace. Sente-se o desequilíbrio das sombras, a tontura da luz, nas fotografias mais passionais. Existem, porém, aquelas divertidas, como a tirada por Carl De Keyzer. Um casal põe máscaras na parte de trás das cabeças, e elas se tocam nos lábios quando eles se sentam de costas um para o outro. Um clique de Keystone mostra uma jovem sentada no colo do amante: o vestido xadrez infla, cheio de anáguas, e as mãos do homem parecem segurar o rosto da mulher como se ela fosse um prato a devorar. O cômico vem pelo contraste com a figura ao lado: no mesmo banco, está também um homem sentado sozinho, com um olhar de cansaço.
            O livro traz camponeses, punks, turistas ou noivos. Estão em jardins, carros ou estações de trem, praias ou cemitérios, no alto de muros ou debaixo d’água. Algumas imagens eternizam o primeiro beijo – mas sei que as mais importantes mostram antigos namorados. São eles que se tocam com a delícia do conhecido, num exercício de afeto próprio dos mamíferos. Penso nisso e lembro que, quando criança, eu achava que a respiração dos peixes também fosse um ritmado gesto de amor – e assim eu passava muito tempo diante de aquários... Aquela ideia pode ter sido um absurdo científico mas até hoje me comove, como se fosse o retrato de um carinho incógnito.

                                    Tércia Montenegro (fotógrafa, escritora e professora da UFC)
                                                                                                         

domingo, 28 de agosto de 2011

Poesia inglesa

Fim-de-semana mergulhada em poesia de língua inglesa: Coleridge, com A balada do velho marinheiro (que me fez lembrar do albatroz do Baudelaire...) e um pouquinho de Byron, que compartilho com vocês. Estrofe 72 do canto III do Childe Harold:

I live not in myself, but I became
Portion of that around me; and to me
High mountains are a feeling, but the hum
Of human cities torture: I can see
Nothing to loathe in Nature, save to be
A link reluctant in a fleshly chain,
Classed among creatures, when the soul can flee,
And with the sky - the peak - the heaving plain
Of ocean, or the stars, mingle - and not in vain.




terça-feira, 23 de agosto de 2011

Exposição Diálogos

Não dá para perder, amanhã, a abertura da exposição do Fernando França, no Centro Cultural Dragão do Mar. Nessa sua atual fase, de telas gigantescas e hiperrealistas (com uma ótima influência do Lucian Freud), o meu amigo França dialoga com a arte de muitas outras figuras importantes dos territórios plásticos cearenses. Aqui ao lado, vocês podem conferir a imagem de um autorretrato dele. Para saber mais, confiram a matéria publicada hoje no Diário do Nordeste:
http://diariodonordeste.globo.com/m/materia.asp?codigo=1030424

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A diferença

Amigos, se puderem leiam minha crônica abaixo, que foi publicada no jornal O Povo de hoje e está também disponível no portal http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/08/17/noticiaopiniaojornal,2280695/a-diferenca.shtml


A DIFERENÇA
                                                                                             
Pela internet, circulam inúmeras mensagens sobre o valor da existência, da essência da vida, do tempo etc. As pessoas até se comovem com tais recados – mas nunca chegam a colocá-los em prática. E o que aconteceria, se todos tivessem a brusca consciência da finitude? Seríamos invadidos pelo desespero ou, ao contrário, pela iluminação? Uma coisa é certa: a mudança de pensamento teria de criar uma nova rotina. Ou melhor, a rotina não existiria. Convictos da inutilidade de tudo, não manteríamos a farsa dos empregos, das contas bancárias, das cirurgias plásticas ou tabelas de calorias. Não enfrentaríamos o trânsito nas piores horas, nem manteríamos a casa neuroticamente limpa. Tampouco nos privaríamos de férias para fazer uma pesquisa extra com fins de pontuação no currículo...
E se o mundo inteiro arriscasse a rebeldia de dizer: “Não. Isso não é importante”? Só iríamos valorizar o prazer, em qualquer dos seus significados: boa comida e bebida, sono pacífico, diversão e, sobretudo, amor. Amor dos amigos, dos bichos e das plantas. Amor da água e do sol, de manhãzinha à beira-mar. Amor das flores e do vento – tudo o que nos rodeia sabe fazer carinho; a gente é que não percebe.
Mas não há grande chance de que a humanidade mude. O frenesi produtivo sofre mínima ameaça, porque as pessoas continuam iludidas, achando que são máquinas. Talvez elas imaginem que são eternas, como uma equação ou um robô. Há muitos circuitos a prendê-las; um deles é o da roda-viva do dinheiro; o outro, do carrossel social.
Quando o assunto é dinheiro, justificam-se os sacrifícios para suprir uma ambição extra: um carro, uma viagem ou uma casa. O problema é que, alcançado o objetivo, de imediato surge outro desejo. No final, o indivíduo dedica toda a vida a projetos de consumo: consome-se, e não desfruta quase nada.
O carrossel social acompanha as fórmulas que colam o rótulo de “ajustados” naqueles que casam, têm filhos e demais preocupações. Os que sufocam ao peso das responsabilidades carregam, no geral, uma cega obediência à rotina. Quando enfartam, todos ao redor se mostram chocados, mas não lhes passa pela cabeça fazer algo diverso.
O diferente é o revolucionário, o anti-social. É o louco, o irresponsável, o artista em delírio criador. Compare seu status ao de um pai de família que todos os dias toma o seu idêntico café com torradas um minuto antes de entrar no elevador. Qualquer dos dois tem, digamos, a mesma hipótese de morrer. Mas ninguém lamenta muito, se isso ocorre ao diferente. É um bom sinal: quem viveu com plenitude não desperta pena.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)



sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Biografia do Salinger

Estou lendo a recente biografia do Salinger, lançada pela Ed. Leya. Uma pena que a tradução seja tão descuidada, com irritantes erros gráficos em praticamente toda página. O estilo também não é envolvente, como Em busca de J.D.Salinger, do Ian Hamilton - mas há revelações novas, como a notícia de uma ascendência polonesa na família de Jerry e a impressionante participação do escritor como soldado na II Guerra. Salinger desembarcou na Normandia no Dia D e trabalhou no serviço de inteligência aliado, para desmascar nazistas: sua sobrevivência foi quase um milagre, entre tantos riscos, e no meio de tudo isso ele carregava os rascunhos iniciais de O apanhador no campo de centeio. Certamente a experiência bélica foi um trauma tão profundo que colaborou bastante para o seu futuro isolamento. Para alguém que já não fazia concessões artísticas, ter a sua obra exposta de modo tão vertiginoso pela opinião crítica (que não raro declara disparates com voz de autoridade) deve ter sido algo arrepiante...

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Ótimos filmes

Neste fim-de-semana, aluguei três filmes que realmente me agradaram, embora pertençam a estilos bem diferentes. Comecei com Lunar, ficção científica, dirigido pelo filho do David Bowie. No princípio, temi que a história fosse resvalar por chavões próprios da categoria, mas felizmente o roteiro alcança uma originalidade. O único probleminha é que talvez termine de maneira um pouco brusca, com aquela sensação de perda de fôlego no final...
Em seguida, passei para a Arca russa, que traz uma narrativa em perspectiva fantástica (assistam para entender, não vou estragar a surpresa), para dar um passeio pelo Hermitage, em São Petersburgo. As imagens são lindíssimas, e o filme é feito num único plano-sequência, sem cortes, que dura 97 minutos e atravessa 35 salas do museu. Além do resgate artístico e histórico, o filme traz reflexões sobre diferenças entre a identidade eslava e a europeia (com aspectos políticos subentendidos, claro). Mas, quer saber? Para mim o mais marcante foi a cena em que se dança uma mazurca: a coisa mais maravilhosa!
O terceiro filme foi Inverno da alma, com paisagem e enredo perturbador ao extremo. É admirável como o resultado conseguiu aliar melancolia a poeticidade, em meio a comportamentos de transgressão e violência - reflexos do frio doloroso do lugar. Sei que meus comentários devem parecer vagos, mas qualquer tentativa de resumo dessa história será prejudicial: o espectador tem de acompanhá-la completamente disponível e inocente - assim, incomoda mais, certamente... mas esse deve ter sido o objetivo dos artistas.
E por falar em frio, voltei da locadora com mais um exemplo, desta vez bem radical: a história de uma fuga da Sibéria. Caminho da liberdade é um lançamento que também promete, e logo mais haverá sessão-pipoca aqui em casa...

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Esther Cross, Liliana Heker e Sylvia Iparraguirre

Estou numa descoberta de boas autoras, através do livro Cuentos de escritoras argentinas, com organização de Guillermo Saavedra. Fiquei absolutamente encantada com os textos de Esther Cross (bem humorada, com uma ironia fina), de Liliana Heker (que mergulha bem no universo psicológico) e de Sylvia Iparraguirre (com um ótimo suspense). Já são dicas para, mais tarde, buscar os livros dessas figuras in locu. A gente, daqui do Brasil, pensa que Argentina é só Arlt, Borges, Cortázar, Mutis, Bioy Casares, Piglia e, no máximo, Silvina Ocampo. Mas através de antologias pode-se ampliar as opções!

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O sono e seus arredores



            Na escala de prazeres físicos, o sono sempre gozou de prestígio comigo. Lembro as raríssimas ocasiões de insônia como os verdadeiros pesadelos que jamais tive – porque no geral, durmo bem e com abundância.
            Ao longo de tantos anos de prática, aprendi a conhecer os diversos tipos de sonolência e seus efeitos. O sono da noite, por exemplo, costuma ser contínuo, como uma longa travessia. Surge anunciado pelas pálpebras pesadas, um torpor (que alguns confundem com preguiça) e o irresistível desejo de se acomodar em determinada posição no leito, para que o sonho venha mais rapidamente. O cochilo da tarde, ao contrário, é breve e fortuito, não exige tanto silêncio para acontecer e pode “pegar” de surpresa.
            O sono tem seus caprichos, a começar pelo ambiente. Claro que uma pessoa exausta pode dormir em qualquer local ou postura, à semelhança de alguém faminto, que talvez coma o que lhe surja no caminho. Mas o bom dormidor, aquele que pratica o sono regularmente, é parecido com um gourmet. Escolhe a temperatura do quarto, a penumbra ideal, o travesseiro na melhor espessura, assim como o outro seleciona os detalhes culinários. A delícia do sono passa pelos lençóis limpos e macios, pelo colchão confortável – tanto quanto o prazer da comida ultrapassa o seu sabor e está também na aparência do prato, no aroma e textura.
            Quem estabelece uma relação afetiva com o sono não o enxerga como necessidade biológica ou perda de tempo. Lembro que certa vez acatei o argumento de um amigo que tentava me convencer a dormir de madrugada, dizendo que assim eu leria mais livros. Ora, nunca minha leitura foi tão infeliz e distraída! Dispenso sem problema festas ou compromissos em troca de livros – mas as horas de sono, não! Até porque dormir não é apenas desligar-se do mundo: os sonhos surgem como uma atração à parte.
            Quando exercito a capacidade de recordar os sonhos, vejo o seu poder de ficção. Já “aproveitei” pelo menos três relatos sonhados, que se transformaram em contos. E quem dirá que esse modo de criar não é interessante? Jamais acreditei que, ao dormir, uma pessoa somente descansa; se o corpo relaxa, a mente produz, inventa e viaja. E são os mistérios (muito mais que as interpretações) que me fascinam, nos sonhos. As histórias que vêm enquanto durmo são “filmes exclusivos”, quer eu assista às cenas ou participe delas. Às vezes, tenho consciência de que estou sonhando, e me solto inteiramente ao surreal; em outros momentos, creio que tudo é realidade, vivo medos e estranhezas, desconfio de cenários – mas nem por isso a história fica menos curiosa.
            Há muitos sonhos divertidos, que eu poderia contar. Entretanto, toda essa escrita me trouxe uns bocejos típicos... Chegou a hora de terminar.

Tércia Montenegro

 Crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/08/03/noticiaopiniaojornal,2275011/o-sono-e-seus-arredores.shtml