LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Nabokov & Pirandello

Trecho d'O olho, de Nabokov, que me lembra irresistivelmente Um, nenhum, cem mil, do Pirandello:
"Porque eu não existo. Existem apenas os milhares de espelhos que me refletem. Qualquer relacionamento que eu estabeleça, a população de fantasmas que parecem comigo aumenta. Em algum lugar eles vivem, em algum lugar se multiplicam.(...) Os dois meninos, aqueles meus alunos, envelhecerão e uma ou outra imagem de mim viverá dentro deles como um tenaz parasita. E então virá o dia em que a úlitima pessoa que se lembre de mim morrerá. Um feto invertido, minha imagem também murchará e morrerá dentro da última testemunha do crime que eu cometi pelo mero fato de viver. Talvez uma anedota qualquer a meu respeito, uma simples anedota em que eu figure, passará dele para seu filho ou neto e então meu nome e meu fantasma aparecerão transitoriamente aqui e ali por algum tempo ainda. Depois virá o fim."

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Contra o senso comum

Amigos, confiram minha crônica publicada hoje na coluna Opinião, do jornal O Povo. Está disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/12/21/noticiaopiniaojornal,2361144/contra-o-senso-comum.shtml

CONTRA O SENSO COMUM

            As férias chegaram! Como sempre, antecipadamente separei a pilha de livros que mais cobiço para esse momento. Desta vez, no topo está Nabokov, com O olho, numa edição recém-lançada. Meses atrás eu tinha me deliciado com A verdadeira vida de Sebastian Knight, e agora quero repetir o escritor. Nabokov, aliás, além de ficcionista foi professor, e o livro Aulas de literatura é uma obra compilada por anotações que ele preparou para seus alunos. Nunca esquecerei as ótimas reflexões que daí tirei – principalmente porque elas não traziam o velho ranço orientacional. Ao contrário, o autor russo sabia que, em matéria de arte, o recomendável ou o óbvio nunca é o mais interessante. O tal senso comum, que aprova uma tendência em determinado local, muitas vezes revela uma esterilidade, um conformismo que rejeita desafios. Assim acontece com toda visão estreita, que tende a negar o diferente – conforme diz Nabokov: “A cor do credo, da gravata, dos olhos, dos pensamentos, dos costumes ou da língua de cada um tropeçará irremediavelmente em algum lugar do espaço ou do tempo com a objeção fatal de uma multidão que detesta essa tonalidade particular”.
            Quem estará com a razão, na batalha das opiniões críticas e dos juízos estéticos? Novamente Nabokov não é doutrinário, não toma partido nem busca verdades inabaláveis. Ele escolhe a celebração do assombro, de um “estado mental infantil e especulativo, tão diverso do senso comum e da lógica”. Este é o caminho para o aprendizado, a verdadeira aula que acontece o tempo inteiro, quando deixamos desmoronar o muro dos conceitos pré-fabricados.
            Porém, não pense o leitor que as reflexões descambam para a anarquia, o vale-tudo em que simples inquietos se confundem com artistas reais. Nabokov distingue impulso e maturação – e explica isso com uma lição que nasce na própria essência eslava: “A língua russa define dois tipos de inspiração: vostorg e vdokhnovenie, que podem ser parafraseados como ‘arrebatamento’ e ‘recuperação’. A diferença entre um e outro é sobretudo de intensidade; o primeiro é breve e apaixonado, o segundo frio e sustentado. Quando as coisas estão maduras e o escritor começa a escrever seu livro, confiará no segundo e sereno tipo de inspiração – vdokhnovenie – companheiro fiel, que ajuda a recuperar e a reconstruir o mundo.”
            É esse universo – ao mesmo tempo livre e equilibrado – que o artista consegue manipular. Ele se distancia daquelas vozes que repetem suas fórmulas e proíbem divergências ou novidades.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

 

domingo, 18 de dezembro de 2011

De volta a Dalí (com uma pitada de Lorca) - ou o contrário

Tirei o fim de semana para saborear os efeitos da sexta-feira à noite, quando tive a alegria de me encontrar com os amigos Sérgio e Roberta. Não bastasse o jantar - com que Sérgio se firma como excelente chef, elegante e poético na criação de um menu inesquecível -, ainda recebi um maravilhoso presente, trazido da viagem espanhola que os amigos fizeram: Cartas escogidas, do García Lorca. Já comecei a ler parte dessa correspondência, que me confirma a ideia de que os artistas são avessos às coisas práticas e adeptos dos grandes tormentos da alma. Lorca, ainda estudante, mal suportava as exigências da família, para que ele  completasse os estudos e tivesse uma carreira formal. Assim ele desabafa numa carta dirigida ao pai: "A mi ya no me podéis cambiar. Yo he nacido poeta y artista como el que nace cojo, como el que nace ciego, como el que nace guapo. Dejadme las alas en su sitio, que yo os respondo que volaré bien." E, em outro momento, um pouco antes, sua reflexão sobre a existência atinge um rasgo dilacerante: "Mi tipo y mis versos dan la impresión de algo muy formidablemente pasional... y, sin embargo, en lo más hondo de mi alma hay un deseo enorme de ser muy niño, muy pobre, muy escondido. Veo delante de mí muchos problemas, muchos ojos que me aprisionarán, muchas inquietudes en la batalla del cerebro y corazón, y toda mi floración sentimental quiere entrar en un rubio jardín y hago esfuerzos porque me gustan las muñecas de cartón y los trasticos de la niñez, y a veces me tiro de espaldas al suelo a jugar a comadricas con mi hermana la pequeñuela (es mi encanto)... pero el fantasma que vive en nosotros y que nos odia me empuja por el sendero. Hay que andar porque tenemos que ser viejos y morirnos, pero yo no quiero hacerle caso... y, sin embargo, cada día que pasa tengo una duda e una tristeza más. Tristeza del enigma de mí mismo!"
Essa leitura de Lorca invariavelmente me leva de volta a Dalí, cujo Diário de um gênio conheci poucos meses atrás (confira os comentários neste mesmo blog). Óbvio que são dois artistas distonantes, com temperamentos e estilos bem diferentes - mas, se existe uma atmosfera nacional para a criação de gênios poéticos, sinto que ambos compartilham da mesma bênção e se tornam irmãos em algum ponto inominável. Aliás, para adensar ainda mais essa sensação, estou com dois filmes à espera para hoje e amanhã: Ensaio de um crime, do Buñuel, e Poucas cinzas, de Paul Morrison. Os dois foram recomendados pelo Sérgio e, embora eu já conhecesse o primeiro, senti uma imensa vontade de revê-lo agora (principalmente para inserir o Buñuel na trindade espanhola). Quanto ao segundo filme, parece que distorce um pouco as relações entre Dalí e Lorca, em nome de um sensacionalismo homossexual (mas ainda não o vi, para opinar a respeito). De toda forma, a gente sabe que muitos filmes de pretensão histórica escorregam na liberdade dramática, pois de perto nenhuma vida tem glamour hollywoodiano. É preciso assistir a esses filmes com ressalvas, portanto. Ontem, por exemplo, eu vi A última estação, que trata dos últimos dias de Tolstói. Apesar da ótima caracterização do ator principal, do cenário e figurino perfeitos, fiquei incomodada com o fato de os atores falarem inglês - e também tenho que dizer que a tal Sofia, esposa do escritor, não tinha um comportamento verossímil em certas cenas...Mas - o que se pode fazer? É preciso dar um desconto, porque muita coisa surge devido às intenções comerciais que motivam essas obras.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Babette

Amigos, se puderem, leiam minha crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Está disponível também no site http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/12/07/noticiaopiniaojornal,2350781/babette.shtml


BABETTE

            Dentre todos os que tiveram influência sobre meus hábitos vegetarianos, ninguém foi mais importante que Babette. Seu nome, retirado de um filme, evoca a visão de banquetes, ágapes infinitos e suculentos. Não à toa: eu realmente encontrei Babette numa festa assim.
            Anos atrás, eu alternava minhas incursões no magistério com trabalhos fotográficos em aniversários, casamentos ou formaturas. Desde que houvesse bom tempo, lá estava eu, com minha câmera. A ocasião a que me refiro era especialmente chique, cheia de mulheres com penteados escorridos. Eu já havia banhado com flash todos os sorrisos artificiais presentes e me dava ao luxo de descansar um pouco, enquanto serviam o jantar. Foi então que, para meu horror, percebi qual era o prato principal: um pato inteirinho, com todas as penas, completamente íntegro. Tinham feito algum trabalho estético para que ele brilhasse num azul-turquesa, que era a exata cor das toalhas das mesas. E ali, cada grupo de convidados recebia a sua porção – ou melhor, o seu pato, numa travessa. Reparei que os exemplares deviam ser ainda filhotes, pelo tamanho, e estavam dispostos numa pose congelada, como se arrumados por um taxidermista. Diante dos meus olhos mudos de pânico, o garçom colocou um dos bichos e acrescentou um prato vazio, com talheres.
            Nenhum dos convidados estranhava a refeição; ao contrário, todos espetavam suas aves e gargalhavam, ao trinchá-las por entre penas azuis. Faltavam alguns minutos para eu fosse liberada do evento, e decidi mergulhar a vista na câmera, repassando as imagens gravadas na memória da máquina. Era difícil distrair-me, e eu tinha vontade de fugir e nunca mais entregar as fotos daquela gente sórdida. No entanto, veio a ideia de fotografar o pato servido à minha frente, para o caso de uma posterior denúncia. Foi quando percebi um tique, um movimento mínimo, da criatura turquesa que despertava.
            O pato parecia embriagado; se não chegou a ser cozido, pelo menos tinha sofrido alguma pancada. Em segundos, porém, agitava as asinhas, querendo descer da travessa. Com o coração saltando, impedi que o bicho se estatelasse da mesa ou fosse visto por um garçom. Peguei-o – e fiquei atarantada. Se o levasse ao banheiro para lavá-lo da tinta, certamente encontraria várias dondocas fofocando. Poderia convencê-las de que carregar um pato numa mão e uma câmera na outra fazia um estilo cult – mas não estava disposta a palhaçadas. Resolvi escapar da festa na mesma hora.
            Em casa, a presença da ave agitou meus gatos, mas consegui tranquilizar todo mundo depois que o pato – já limpo e alimentado – foi trancado para dormir num banheiro. Na manhã seguinte veio o batismo: o pato era fêmea, e tinha me presenteado com um ovo, talvez o seu primeiro.
            Uma semana depois, deixei Babette no Eusébio, na fazenda de um amigo que cria patos pelo prazer de vê-los nadar no espelho d’água. Ela foi bem recebida e virou uma pata praticamente igual às outras, mas eu conseguia distingui-la por certa sombra azulada, que nunca se despregou totalmente de suas penas.
            Babette fez com que eu nunca mais comesse aves. Ah, e fez também com que eu não entregasse as fotos daquele evento...        

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Para afixar com ímãs na geladeira

                                                        Raymond Chandler com Big Sleep

domingo, 4 de dezembro de 2011

Eu servi o rei da Inglaterra


A excêntrica família de Antônia sempre foi o meu referencial de filme no estilo surreal-divertido, com inúmeras pinceladas inteligentes e artísticas. Ontem, porém, encontrei uma obra que rivaliza magnificamente com aquela: Eu servi o rei da Inglaterra, filme tcheco de 2007. O título original é Obsluhoval jsem anglického krále, e por aqui já se vê o parentesco eslavo do tcheco com a língua polonesa (confirmado em muitos diálogos, pela pronúncia). Junte-se a esse sabor afetivo a lembrança de que Milan Kundera, um de meus autores preferidos, é também natural desse território linguístico. Alguém poderia argumentar que, por causa desses pontos, eu me tornei partidária do filme logo de cara. É possível, é possível. Mas ainda assim sei que muitos vão apreciar essa dica - mesmo que por outros variados motivos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

a máquina de fazer espanhóis

Maravilhosa, a impressão d'a máquina de fazer espanhóis, livro do valter hugo mãe. Este autor foi muito badalado na última festa de Paraty, mas não sem motivos. Sua narrativa não deve nada à destreza do Saramago e do Lobo Antunes. Claro que para um leitor brasileiro às vezes o tema de Salazar soa um pouco repetitivo na literatura portuguesa recente - mas o que sabemos nós dessa ferida, afinal? Se a ditadura no Brasil não ganhou um alcance temático tão forte, isso são idiossincrasias nossas (culpa da mania de esquecer e descuidar, talvez). De toda forma, o universalismo do texto do hugo mãe transcende essas âncoras locais. Deixo vocês com um fragmento que prova isso:
"deus é uma cobiça que temos dentro de nós. é um modo de querermos tudo, de não nos bastarmos com o que é garantido e já tão abundante. deus é uma inveja pelo que imaginamos. como se não fosse suficiente tanto quanto se nos põe diante da vida. queremos mais, queremos sempre mais, até o que não existe nem vai existir. e também inventamos deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. é tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. é tão mais fácil se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para o punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou. e a comunidade respira mais de alívio por saber que assim estamos todos policiados da melhor maneira, temos um polícia dentro de nós, um que sendo só nosso também é dos outros e, a cada passo, pode debitar-nos ou acusar-nos e terminar o nosso percurso com facilidade. eu sei que a humanidade inventa deus porque não acredita nos homens e é fácil entender por quê. os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros." (pp.194-5)