LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Merleau-Ponty


Nestes dias chuvosos e melancólicos, eu mergulho na Fenomenologia da percepção, do Merleau-Ponty - e dela recolho alguns trechos memoráveis (as referências são da edição de 2006, da ed. Martins Fontes):


“(...) a fenomenologia não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua ‘facticidade’.” (p.1)
“Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia em relação à paisagem. (...) eu não poderia apreender nenhuma coisa como existente se primeiramente eu não me experimentasse existente no ato de apreendê-la (...) a consciência [é] a condição sem a qual não haveria absolutamente nada, e o ato de ligação [é] como o fundamento do ligado.” (p.4)
“O real deve ser descrito, não construído ou constituído. (...) O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis. A percepção (...) é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.” (pp.5-6)
“(...) não existe pensamento que abarque todo o nosso pensamento. O filósofo (...) é alguém que perpetuamente começa.” (p.11)
“(...) no final das contas, nós só temos estados de nós mesmos.” (p.13)
“(...) se eu procurasse, através de ‘critérios’, distinguir minhas percepções de meus sonhos, eu deixaria escapar o fenômeno do mundo. (...) o problema é agora (...) o de descrever a percepção do mundo como aquilo que funda para sempre a nossa ideia da verdade. (...) O mundo é aquilo que nós percebemos. (...) O mundo não é o que eu penso, mas aquilo que eu vivo.” (p.13-14)
“Kant mostrou (...) que a percepção interior é impossível sem percepção exterior, que o mundo, enquanto conexão dos fenômenos (...), é o meio para mim de realizar-me como consciência.” (p.15)
“Em um acontecimento considerado de perto, no momento em que é vivido, tudo parece caminhar ao acaso (...). Mas os acasos se compensam e eis que essa poeira de fatos se aglomera, desenha certa maneira de tomar posição a respeito da situação humana, desenha um acontecimento cujos contornos são definidos e do qual se pode falar. (...) Deve-se compreender de todas as maneiras ao mesmo tempo, tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos os aspectos a mesma estrutura de ser. (...) todos os períodos históricos aparecem como manifestações de uma única existência ou episódios de um único drama – do qual não sabemos se tem um desenlace. Porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido, e não podemos fazer nada nem dizer nada que não adquira um nome na história.” (pp.17-8)
“A racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. (...) a filosofia, assim como a arte, é a realização de uma verdade. (...) A racionalidade não é um problema, não existe detrás dela uma incógnita (...): nós assistimos, a cada instante, a este prodígio da conexão das experiências (...). O mundo e a razão não representam problemas; digamos, se se quiser, que eles são misteriosos, mas este mistério os define, na poderia tratar-se de dissipá-lo por alguma ‘solução’, ele está para aquém das soluções. A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta ‘profundidade’ quanto um tratado de filosofia. Nós tomamos em nossas mãos o nosso destino, tornamo-nos responsáveis, pela reflexão, por nossa história, mas também graças a uma decisão em que empenhamos nossa vida, e nos dois casos trata-se de um ato violento que se verifica exercendo-se.” (pp.18-9)
“O vermelho e o verde não são sensações, são sensíveis, e a qualidade não é um elemento da consciência, é uma propriedade do objeto. (...) A análise descobre portanto, em cada qualidade, significações que a habitam.” (p.25)
“Se nós nos puséssemos a ver como coisas os intervalos entre as coisas, [veríamos] verdadeiramente um outro mundo.” (p.39)

quarta-feira, 28 de março de 2012

Millôr

Que ano de tantas perdas, meu Deus! Decididamente, meus heróis não morreram de overdose...

Os cupins

OS CUPINS


Naquela tarde, o amado estava folheando um atlas de onicomicoses, e eu me preparava para fazer um café, quando reparei na poeira ao lado da porta. “Engraçada, essa sujeirinha que fica voltando”, comentei, enquanto enchia o bule. “Que sujeirinha?” – quis saber o amado. Apontei os grãos numa pilha triangular, diminuta, ao pé da porta. Disse que tinha varrido várias vezes, mas logo o montinho de areia voltava.
“ISSO É CUPIM!” – escutei. Ao mesmo tempo em que uma labareda azul atingiu o bule, o susto também me incendiou. Quis derramar todo o café no chão: juro que naquele instante olhei para o pacote com uma desconfiança absurda, como se estivesse criando cupins numa embalagem aromática. Só depois entendi que os malditos estavam na tal poeirinha – ou melhor, estavam na porta, dentro dela, roendo a madeira e expelindo a dureza processada em grãos.
Nos minutos seguintes, pressenti cupins a me sitiarem, escondidos nas reentrâncias de qualquer móvel. Lembrei uma escrivaninha que tive na adolescência: ela ficou coberta por um lençol, durante uma viagem. No meu retorno, estava tão esburacada quanto uma colmeia, cheia de minúsculos pontos pretos e furiosos. Aquele tinha sido o meu único (e traumático) contato com o inseto, mas eu já me via expulsa de casa, sem armário nem cama – todos cavados em labirintos de mordida.
Alcancei com desespero minha biblioteca; cheguei a vistoriar alguns livros, buscando trilhas de mastigação. Felizmente, tudo parecia intacto, e apenas a porta abrigava os temíveis hóspedes. Deviam ter hibernado por meses, até começarem a se manifestar. “Mas agora”, dizia o amado, “temos que chamar uma firma de dedetização”. Telefonei bastante, para encontrar uma que não sugerisse envenenamento coletivo. A maioria exigia a casa inteira “à disposição” para injeções e pinceladas tóxicas de efeito prolongado. A que eu escolhi propôs um tratamento brando – mas ainda assim, no dia seguinte, mostrei a porta a um homem que se vestia como se viesse da usina de Fukushima.
Ele manejou vários instrumentos, espetando e raspando a madeira. Ao final, disse que o veneno não tinha cheiro mas era eficaz. Falou em garantias dadas pela vigilância sanitária e me passou um recibo, com a mão enluvada. Quando saiu, ainda envolto em máscaras, eu me afastei da porta. Ela ficou livre de cupins, mas talvez esteja tão perigosa quanto uma pedra de urânio.

            Tércia Montenegro (crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/03/28/noticiasjornalopiniao,2810014/os-cupins.shtml)

terça-feira, 27 de março de 2012

Antonio Tabucchi

 
"Nunca busquei viver a minha vida
A minha vida viveu-se sem que eu quisesse ou não quisesse.
Só quis ver como se não tivesse alma
Só quis ver como se fosse eterno." (Alberto Caeiro)

segunda-feira, 19 de março de 2012

Bachelard líquido

Ontem e hoje li - com a leveza propícia - A água e os sonhos, de Gaston Bachelard. Faz toda a diferença, quando se lê teoria revestida de poética! Comprovem por alguns trechos deste livro:
"Sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho." (p.5)
"(...) a água é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser. (...) O ser voltado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente." (pp.6-7)
"Mas a terra natal é menos uma extensão que uma matéria; é um granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água ou uma luz. É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; é a ela que pedimos nossa cor fundamental." (p.9)
"Do homem, o que amamos acima de tudo é o que dele se pode escrever. O que não pode ser escrito merece ser vivido?" (p.11)
"Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial." (p.18)
"Em Bruges todo espelho é uma água dormente." (p.25)
"A vida real caminha melhor se lhe dermos suas justas férias de irrealidade." (p.25)

quinta-feira, 15 de março de 2012

Hugo Cabret

Depois de tanta propaganda, fui assistir à Invenção de Hugo Cabret... e saí com a velha sensação de desapontamento que me invade quando vejo filmes supostamente inteligentes, mas que se revelam banais. Há algo de infantil e irritante no otimismo de toda essa fantasia: caras e bocas previsíveis (e nesse ponto a fisionomia de Chloë Moretz é óbvia e piegas - um problema de direção, creio, pois esta mesma atriz, poucos anos atrás, encarnou com destreza a menininha sanguinária de Kick-Ass e a vampira na versão americana de Deixe-me entrar), além de um texto cheio de lugares-comuns me fizeram suspirar de enfado. Ainda há bons motivos para ver essa história, como a qualidade visual e o valor do resgate histórico - mas não é nada que me faça repetir a dose.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Água salgada

ÁGUA SALGADA

            A maravilhosa Karen Blixen, no primeiro conto das suas Sete narrativas góticas, traz uma reflexão que mostra como a literatura equivale a uma conversa com pessoas sábias. O texto se intitula “Dilúvio em Norderney”, e lá pelo meio da história o personagem Jonathan, desgostoso da vida, desabafa com seu pai, que lhe responde: “Sei de um remédio bom para tudo: água salgada.”
Água salgada – seja do suor, das lágrimas ou da água do mar – é, de fato, um recurso pelo qual a maioria dos problemas se resolve. Grandes mudanças acontecem através do esforço, do trabalho árduo e insistente: o tal suor do ofício, como dizem. Assuntos financeiros, profissionais ou burocráticos estão sob o jugo dessa insistência – uma batalha miúda, dia a dia desgastada, até o instante em que as coisas enfim se resolvem. Para os que estão de fora, às vezes parece um milagre...
 Em outros casos, entretanto, o empenho físico não adianta. Penso nas clássicas questões emotivas, que arrancam boa dose de tristeza ou, quem sabe, arrependimento. Aqui as lágrimas têm uma utilidade inestimável para a recuperação – sem essa catarse, sabe lá se não sufocaríamos, numa explosão interna de sentimentos? Por isso quem nunca chora se transtorna, mais cedo ou mais tarde. Motivos não faltam, geralmente associados à perda de um afeto. Quem nunca viveu amores ou amizades que desaparecem em definitivo ou entram na fase de espera? Toda morte, simbólica ou real, merece uma libação de lágrimas.
Por último, temos a água salina que está fora do indivíduo, é tempero de paisagem. A observação mostra que o mar, com seu grandioso panorama, muda a proporção de nossos míseros problemas. Basta contemplar as ondas, o ritmo periódico da natureza, para relativizar o que se vive, enxergar a potência trivial de nossas próprias marés, altas ou baixas que sejam. Se por acaso os problemas não forem tão míseros, o mar sempre ajuda a esquecer: dizem que apreciar sua beleza afugenta dor e má energia. Há ainda a opção de fugir por sua rota navegável. Viajar também é uma forma de lidar com problemas, escapando deles quando não resta outra medida.
Nesse ponto, a literatura de Karen Blixen imita o mar por ser claramente viajeira, carregando passageiros numa deliciosa fuga imaginária. Esta é, aliás, a característica de toda boa ficção: deve ser marítima pelas qualidades de mistério, profundeza e travessia. Assim a história desliza como água e, feito o sal, conserva o leitor disposto, com o olhar treinado para os horizontes.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
 Crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/03/14/noticiasjornalopiniao,2801151/agua-salgada.shtml)

sábado, 10 de março de 2012

A melhor definição

GATO

De dengo, pelo e preguiça
            é feito o corpo do gato
Talvez seja bicho de seda
ou alma andando de quatro
Pois pisa a Terra e não pesa
e se evapora em um salto.
É mais mistério que fato,
direito e avesso de grave,
E como o mistério
            É visível,
Existe mas é improvável.

Carlos Nóbrega

sexta-feira, 2 de março de 2012

Lucio Dalla

Tristeza profunda...

quinta-feira, 1 de março de 2012

Os esquecidos - na Grua

Amigos,

Confiram minha crônica "Os esquecidos", publicada hoje no portal da editora Grua, no projeto "A cada 15": é só clicar no endereço http://www.grualivros.com.br/#/a-cada-15
O tempo em estado sólido, meu novo livro de contos, será publicado por esta editora em breve, e tenho certeza de que ficará lindo!