LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Vastas emoções




 Como sempre, minhas leituras mais prazerosas são guiadas pelo acaso. Gosto da sensação de escolher um livro ainda não lido e tirá-lo subitamente da prateleira: é como uma viagem surpresa, na qual se embarca sem muita bagagem. Dessa vez, parei um pouco de ler a biografia do Jack London (que estava me deixando meio assustada), para agarrar um Rubem Fonseca que ainda não conhecia: Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Embora eu tenha as minhas ressalvas quanto à "secura" do estilo dele, não poderei jamais negar a excelência do Rubem na condução de uma história - e também na marca meio erudita, que às vezes ele assume, sem por isso deixar de ser popular. No caso do romance em questão, a "aula" por trás da história (que é tradicionalmente policialesca, com aventuras, perseguições e casos de amor frugais) fica por conta das referências a Isaak Bábel, outro autor que eu admiro muitíssimo, apesar de ainda se encontrar no meu panteão dos intocáveis. Explico: na minha biblioteca, há um espaço, não necessariamente bem delimitado, para aqueles escritores que me parecem tão, mas tão geniais, que precisam ser "economizados" para momentos sublimes. Por muito tempo eles ficam intocados, criando conforto com sua simples presença, que é também um convite tentador.Mas resisto ao impulso de me lançar às suas obras por completo; leio um tantinho aqui, outro ali, para ficar absolutamente impressionada e decidir que o impacto é grande demais e preciso deixar para apreciar aquilo numas férias, quando tiver tempo à vontade para refletir sobre as impressões do que li... Isso acontece com o Rosa, o Bábel, o Tchékhov, o Proust, a Woolf e o Faulkner... Ah, e o Javier Marías também, e mais alguns que não menciono agora, para não me desviar demais do tema. Porque eu estava falando do livro do Rubem Fonseca, que recupera o Bábel e, em determinado momento, encontra semelhança entre a fisionomia de Goya e a do autor russo. Fui procurar na internet fotos dos dois e encontrei estas duas, que talvez justifiquem a afirmação do romance. Porque há algo nos lábios, na curvatura das sobrancelhas ou no cabelo que realmente aproxima os dois artistas. Ou talvez não seja um traço de aparência, mas o mesmo espírito trágico que, através do tempo, os une...

domingo, 27 de maio de 2012

Conte o seu milagre

Não, meus amigos, esta não é uma solicitação de teor religioso, nada disso! Eu apenas estou motivada por uma leitura recente do Stendhal, nos fragmentos do seu autobiográfico Lembranças de egotismo. Alguns trechos foram publicados na revista Serrote n°10 (pp.83-87), e a ideia é muito divertida e interessante! Consiste em imaginar uma lista de "milagres" ou "privilégios" que estariam reservados a alguém, durante sua vida. Você deseja coisas impossíveis, que contrariam leis da física ou da economia? Não importa! Formule o seu milagre; não quer dizer que você conseguirá realizá-lo, mas o simples ato de imaginá-lo é um ótimo exercício criativo!
Aqui vão exemplos do Stendhal, para inspirar os amigos que quiserem me escrever e também contar o seu desejo de milagre:
"God me conceda a seguinte carta de privilégios:
ARTIGO 1
Nenhuma dor séria até a velhice muito avançada: e, então, nenhuma dor, mas a morte por apoplexia, na cama, durante o sono, sem nenhum dor moral ou física. Não mais que três dias de indisposição a cada ano. O corpus inodoro, assim como tudo que dele provém.
ARTIGO 5
Cabelo bonito, dentes excelentes, pele boa, nunca áspera. Odor suave e leve. Em 1 de fevereiro e 1 de junho de cada ano, as roupas do privilegiado voltam a ser como eram na terceira vez que as usou.
ARTIGO 9
Todos os dias, às duas horas da manhã, o privilegiado encontrará em seu bolso um napoleão de ouro, mais o valor equivalente a quarenta francos na moeda corrente do país onde se encontrar. As somas que porventura lhe roubarem reaparecerão, às duas horas da manhã, sobre uma mesa diante dele. No momento de golpeá-lo ou de lhe servir veneno, os assassinos terão um ataque de cólera aguda, que durará oito dias.
ARTIGO 13
O privilegiado não poderá roubar; caso tente fazê-lo, seus órgãos se recusarão a tal ação. Poderá matar dez seres humanos a cada ano, contanto que não lhes tenha falado antes. No primeiro ano, poderá matar um homem, contanto que não lhe tenha dirigido a palavra em mais de duas ocasiões diferentes.
ARTIGO 23
Dez vezes por ano, o privilegiado poderá ser transportado para o lugar que bem quiser, à razão de uma hora para cada cem léguas; durante esse trânsito, ele dormirá.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Carta a Cecília Meireles

CARTA A CECÍLIA MEIRELES

            Minha querida Cecília,
            Escrevo-te pela primeira vez, como se fosses íntima, bem próxima de minha convivência. Sobretudo escrevo-te como se pudesse ter uma resposta, fingindo não dar conta de teu desaparecimento, há mais de quatro décadas. Apenas a literatura é capaz de milagres dessa natureza.
            Lembro que li pela primeira vez teus versos quando era criança – brinquei com as rimas de Ou isto ou aquilo, aprendendo que a palavra é flexível. Depois, passei para as crônicas de viagem e para a vaga música de outros poemas. Visitei os inconfidentes com teu Romanceiro, participei de retratos, canções e tantos naufrágios. Sim, minha querida, talvez os naufrágios tenham sido o meu principal encanto. Eu, que nunca poderia viver distante do mar, encontrei a perfeita ressonância naqueles acordes de água e pedra.
            Mais tarde, curiosa de outros detalhes, descobri coincidências entre nós: o magistério, o misticismo, a solidão indispensável. Aprendi com tua história que a morte pode ser suavemente celebrada. Contigo, visitei o Oriente e encontrei tua irmã de poesia, Gabriela Mistral (aliás, Lucila Godoy Alcayaga). Bisbilhotei tua correspondência com o Mário de Andrade e tive a delícia dos segredos encontrados. Acompanhei um pouco tua rotina, a paixão pelo folclore, por flores e silêncio. Também conheci tuas filhas e netos, palmilhei muitos de teus passos – tudo pelo velho milagre literário.
            É por isso, Cecília, que hoje arrisco escrever esta carta: para que saibas que não compreendo inteiramente os mistérios que já desvendaste, mas, assim mesmo, ler teus versos me tranquiliza. Recordo que o instante existe, que a vida agora está completa – e nada mais é necessário. Talvez eu queira apenas de vez em quando contemplar tua foto, pensando na verdade de teus olhos claros. Olhinhos de gato.
            Beijos da sempre leitora
                                                            Tércia 

(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site  http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/05/23/noticiasjornalopiniao,2844361/carta-a-cecilia-meireles.shtml)  

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Hijos sin hijos

Trecho do livro do Enrique Vila-Matas:

" - Ayer soñé que era un león - me dijiste una tarde en Sa Ràpita -. Todos mis sueños suelen ser grises, pero éste no lo era. Estaba tan convencido de que era un león, me parecia aquello tan natural, que si no llego a levantarme a cerrar una ventana que bateava, habría continuado así, sin percibir nada extraño. Hasta tal punto me parecía del todo natural que yo fuera un león. Sólo al levantarme o, mejor dicho, ya levantado, la visión de mi pijama a rayas, mi manera de andar, en fin, la cama misma, todo me condujo a darme cuenta de que era hombre y no león. Pero acababa de ser león, y eso no había ya quien pudiera cambiarlo. Más tarde puse mis codos sobre la mesa de estudio y volví a la reflexión. Volví a ser tu querido y estúpido misántropo. Pero no podia apartar de mí la idea de que había sido león." (Hijos sin hijos. Barcelona: Editorial Anagrama, 2007, p.201)


terça-feira, 15 de maio de 2012

Um dia, um gato

Não preciso nem dizer que fui atraída pelo título deste filme, né? O segundo motivo para eu sair com ele da locadora foi o fato de ser um filme tcheco, da década de 60 (e eu estava com a boa impressão do Eu servi o rei da Inglaterra). Bem sei que época e lugar não são referências garantidas de qualidade, mas neste caso a aposta foi certeira: Um dia, um gato é tão bom quanto o outro filme citado, e desenvolve sua história num clima de leveza e poeticidade. O enredo mergulha totalmente no clima artístico, envolvendo pintura, circo e dança - além do próprio cinema, é claro. O personagem feito por Vlastimil Brodsky é um professor que realiza seus filmes caseiros sobre aves, na tentativa de mudar os hábitos de estudo das crianças, que costumam observar os bichos apenas como animais empalhados, pertencentes a um museu coordenado pelo diretor da escola. Dentro do clima de magia, a história tem uma composição de cores fantástica (que lembra certas criações de Andy Warhol; não é possível que não tenha sido proposital!). A trilha sonora também é inesquecível! Vale ainda pensar na mensagem política subliminar, contra o domínio comunista que o país vivia.
Por último... quem resiste a um gatinho desses, usando óculos? Só por isso, o filme já valia!

Miranda July

Por indicação da amiga Fernanda Meireles, no último final de semana conheci a multiartista Miranda July, através do filme "Eu, você e todos nós", em que ela atua e dirige. A história é divertida e interessante, com muitas situações em clima de absurdité artística: é parecido com aquilo que eu disse antes sobre o livro da Viola di Grado (embora ela e Miranda sejam autoras em atmosferas distintas): existe coragem de arriscar, de insistir numa tendência que talvez não seja aceita ou compreendida por todos - mas será que isso existe? e se existe, será que importa? A experiência com o filme de Miranda July (e também uma visita virtual pelos seus outros projetos) me fez perceber - ou lembrar - o fato de que os artistas, querendo ou não, são sempre isolados, são minoria em assumir uma sensibilidade que talvez as outras pessoas até tenham, mas passam a vida dedicando-se a esconder. E essa sensibilidade não precisa ser explicada, justificada de modo algum: pode circular numa esfera de surrealidade, desde que haja um propósito estético. E com Miranda July, há. Suas performances ou criações na área da arte visual são delicadas e divertidas, questionadoras ou irônicas. Sobretudo, fogem da mesmice, que é o que um artista sempre deve fazer. Em literatura, ainda não a conheço; descobri que ela tem um livro de contos, mas ainda vou encomendar. Suspeito que a sua inquietação criativa deva invadir essa área também, com cenas marcantes - incômodas, para alguns -, mas por enquanto não posso opinar. De qualquer modo, fico com a ideia de que sua incursão literária é parte de um projeto muito maior, de extravasamento artístico em várias linguagens. Cada vez mais acho isso legítimo, e me rio do imbecil que certa vez me acusou de pretensiosa, vejam só, porque além de escrever eu também fotografo. Mentes estreitas acham que uma pessoa deve se bitolar a um ofício, assim como cada qual no seu galho estável. Pois eu comemoro, quando encontro um artista que quer ser tudo ao mesmo tempo e não tem nenhuma mesquinhez tímida diante da vida. Miranda é um bom motivo, nesta semana, para dizer olé.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Isabel Tallos

Mais uma fotógrafa incrível que "descobri" recentemente: Isabel Tallos. Nascida em Madri em 1983, ela expõe desde 2008.
As imagens abaixo são algumas das minhas preferidas, mas quase todos os trabalhos desta autora têm leveza e poeticidade marcantes. Os seus projetos podem ser vistos no site http://www.isabeltallos.com/entrar.html





quarta-feira, 9 de maio de 2012

Resenha d' O tempo

Amigos,

O escritor e crítico literário Rinaldo de Fernandes fez uma resenha sobre meu livro O tempo em estado sólido. Confiram o texto abaixo:

O BIZARRO E O POÉTICO

EM TÉRCIA MONTENEGRO  

  

  
por Rinaldo de Fernandes


É da força dos contrários que Tércia Montenegro extrai a substância de seus contos em O tempo em estado sólido, livro vencedor do Prêmio Governo do Estado de Minas Gerais 2010, publicado agora, em 2012, pela Ed. Grua, de São Paulo.
Tércia é uma contista tchekoviana. Pouco enreda e extrai das situações narradas sentidos fortes, profundos, da natureza humana. Consegue em poucos passos jogar o leitor na interioridade intrincada de seus personagens.
Seus protagonistas, permanentemente, vivem sentimentos antagônicos. Há nos contos uma mistura de afeto e desafeto, de amor e ódio. Acomodam-se, no mesmo enredo, o bizarro e o poético.
Bizarra é a personagem Leila, de "A alma e o peso", como liberada, intensa, é Larissa, em "Pleno trânsito". É muito bem armada a intriga de "As paisagens", em que o trágico e o estético se sobrepõem, quando da visita do protagonista à galeria de arte. "O mágico" é um belo conto, que mistura miséria (a do avô cego de uma garota) e magia (transposta com engenho, na narrativa, para o campo semântico da malícia – a do artista seduzindo a garota para partir com ele). Outro excelente conto é "Serpentina", que flagra o ciúme forte de uma mulher. Mulher e marido estão diante de uma adolescente que, num hotel, morre afogada diante do casal (o marido estava visivelmente desejando a adolescente) – Eros e Tânatos, tragédia e sadismo, porfiam no enredo.
Em "O que reluz e arde no ar", o tema da prostituição é explorado com poesia e sutileza, sem que o narrador deixe de lançar sobre a protagonista um olhar impiedoso, profundamente realista. "Aquarela com bonsai", criando um intertexto com a pintura (como em outros momentos no livro), narra uma cena de sexo a três, da qual participa uma negra bela. Conto bizarro e de atmosfera lírica. "A ignorância" tematiza a incomunicabilidade humana, os silêncios instransponíveis entre os indivíduos.
"Cartografia de instantes" é onírico, com personagem solitária, extraindo do vazio as suas mais fortes sensações (aliás, a solidão é um tema central no livro).
"O lado imóvel", mais uma vez trazendo o intertexto com a pintura, narra a aventura de dois garotos que seguem para tentar pegar os quadros de um pintor (pai de um dos garotos) que foram confiscados e estão no depósito da alfândega. Um enigma envolve os quadros. Trata-se de uma narrativa mais fluída, de ritmo mais acelerado, abrigando o suspense.
Em "A sugestão", o protagonista, um escritor (escritor, pintor ou fotógrafo são tipos presentes no livro), sofre de síndrome do pânico. Conto que flerta com o fantástico. Traz mais uma vez uma situação bizarra, misturando de novo sentimentos opostos – enquanto o marido, inseguro e incerto por conta da doença, segue para um enterro, a mulher o trai num motel. No final, o casal se recompõe na sua (falsa ou fantasiosa) harmonia.
"Carceragem", também inserido no contexto familiar, tematiza a demência, codificada na desarmonia entre duas irmãs. "Exposição" (o próprio título remetendo à pintura) traz um interessante diálogo de um casal sobre sedução e sentimento. "As moedas" narra um crime num circo, de um homem frustrado por não ter filhos. Também é uma narrativa mais fluída, que difere da densidade da maioria dos contos.
"Semelhante ao mar" encerra o volume. Lembra um pouco "Venha ver o pôr do sol", de Lygia Fagundes Telles (de quem, alias, vejo influências em Tércia). A protagonista se dirige para um cemitério, para o velório do pai na capela. Ela carrega um ódio profundo pelo pai, mesmo ele estando morto: “Não aceita a simbólica pazinha de enterrar, nem trouxe flores que derramasse num gesto bailarino”. No fim, a protagonista segue para tentar rever um amor da adolescência. Ódio e afeto (metaforizado na memória de uma paixão) se entrelaçam neste que é provavelmente o melhor conto do livro.
Há ainda nos contos metáforas muito bem elaboradas, que se afinam, perfeitas, precisas, às situações narradas. Tudo isso fazendo de Tércia Montenegro um dos nomes mais expressivos do conto brasileiro contemporâneo. Uma autora para ser lida e aplaudida.

Fonte: http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/ 

As fobias


AS FOBIAS

Há mistérios que circundam os medos peculiares. Para certas pessoas, uma situação de terror pode ser desencadeada por um objeto ou situação trivial. De tanto conhecer fobias alheias, aprendi a respeitá-las – mas não deixo de achar algumas bem esquisitas. Às vezes, penso que a atitude pode ser confundida com uma excentricidade ou simples repulsa. A fobia clássica, entretanto, domina por inteiro o indivíduo, reduz seus nervos a frangalhos. É o que leva um sujeito musculoso a gritar feito um bebezinho, diante de abelhas; ou o que desespera uma dondoca, capaz de quebrar os saltos altos numa correria para fugir de um sapo absolutamente imóvel. A fobia é uma coisa íntima, intransferível. Há quem chore de pavor diante do mar, e não por medo das profundezas ou da violência das ondas, mas por intolerância à espuma. Aquele rendilhado líquido causa nojo em certas almas frágeis...
Houve aquela vez em que uma amiga entrou na minha casa e deu um grito ao ver a cabeça de ex-voto (que comprei por ser parecida com Drummond), na estante da sala. Ficou tão transtornada que não conseguia olhar para o objeto; pediu-me que o cobrisse com um lenço e depois fugiu para a cozinha, onde me contou que o seu pior medo era receber uma máscara mortuária pelo correio. Tentei argumentar que não tinha recebido a cabeça, mas a comprara no Mercado Central e, além disso, ela não fora esculpida no molde de nenhum defunto – mas a amiga estava nervosa demais. Tomou um copo d’água e inventou compromissos, para se despedir.
Outra colega me relatou o seu pânico por banheiras. De piscina, não tinha medo nenhum, conforme explicou. O problema eram as banheiras, esmaltadas ou cromadas, com hidromassagem ou sem, pés de garra ou não... todos os modelos lhe tiravam o fôlego e produziam calafrios. Um psicanalista poderia descobrir a origem dessa reação, mas eu apenas me espantei.
Minha história preferida, porém, é a mais bizarra. Trata da fobia que atacou uma pobre moça interiorana, recém-chegada a nossa capital. Em vez de se amedrontar com o trânsito e os aspectos temíveis de alguns monstros, digo, carros, a jovem apavorou-se com garrafas. Claro que ela conhecia garrafas de antes; é esquisito imaginar um lugar onde elas não existam. Mas foi em Fortaleza que o susto apareceu – e continuou. Até hoje a mocinha não pode ficar diante de uma garrafa, seja de que tipo for. É imediatamente acometida por tremedeira nervosa, com suores frios.
Os médicos sugeriram que o seu repúdio era uma resposta ao alcoolismo de um tio. Entretanto, a jovem jamais tivera grande contato com o parente, e também não fazia distinção quanto ao conteúdo das garrafas: contivessem vinho, água, suco ou absinto, sua atitude era idêntica. Outra prova de que a associação não era feita com o líquido e sim com a forma da garrafa, é que a moça podia beber em paz qualquer dose que lhe aparecesse servida num copo. Se, porém, visse a garrafa, começava o nervosismo. Por causa dessa fobia, a garota perdeu vários empregos: nunca pôde ser garçonete ou caixa de supermercado. Ela perdeu até mesmo o noivo, quando ele propôs levá-la a um boliche...

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje, no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/05/09/noticiasjornalopiniao,2835694/as-fobias.shtml)

sábado, 5 de maio de 2012

Francesca Woodman

Estou completamente fascinada pela obra da fotógrafa Francesca Woodman. Essa artista, de vida tão breve quanto intensa, trabalhou com imagens misteriosas, em casas degradadas, onde figuras femininas parecem sofrer ou se camuflar (vejam, por exemplo, a segunda foto). A maneira como ela encontra novos usos para o corpo humano é impressionante, e creio que poucas vezes se encontra uma fotógrafa tão autoral, que crie com atmosferas um estilo próprio!
Infelizmente, os livros que reúnem a obra de Woodman estão todos esgotados, mas na internet podemos achar várias fotos assinadas por ela (em algumas, ela é a própria modelo). Deixo estes três exemplos aqui no blog, para lhes mostrar como o impacto desta fotógrafa se equipara, talvez, apenas ao de Diane Arbus...

terça-feira, 1 de maio de 2012

Settanta acrilico, trenta lana

Acabo de ler Settanta acrilico, trenta lana, da italiana Viola di Grado (embora minha edição seja espanhola). A sensação, embora não seja de a de um êxtase perfeito, é extremamente boa. Faz a gente acreditar na possibilidade de que a mesmice se rompa, pelo menos de vez em quando. Mas é preciso ter coragem - um ímpeto de destruição, talvez, para reformular as estruturas óbvias, os conceitos. E Viola faz isso sem vanguardismos inúteis - ou melhor, creio que o seu vanguardismo não é exposto, embandeirado: é uma essência que lhe acompanha o temperamento. O livro combina perfeitamente com ela, com sua postura, seu jeito de se vestir. É incômodo vê-la em entrevistas, falando em vídeos extremamente óbvios, por ocasião de seus prêmios - a gente percebe como ela repete as "explicações" com fastidio. Sua história não é pose nem tem estratégia de mercado; apesar disso, está badalada como um best-seller. Mas não se enganem os leitores que buscam coisas boas: Settanta acrilico é inovador e agressivo, em sua autenticidade. Traz imagens perturbantes - sinal de uma artista que não põe freios na criação (o que é, sempre, um ótimo sinal). O alvoroço do mercado pode nos colocar de pé atrás, mas esta obra vai continuar sendo para uma degustação rara.