LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Multidões

Certa vez, quis entrar na moda e fui a um show badaladíssimo. Mal sabia que tais espetáculos não podem ser frequentados com sentimentos amenos ou nulo teor alcoólico...

A chateação começou na entrada. Quando os portões de uma casa de show se abrem, qualquer organização se dissolve, e pouco importa a ordem de chegada. Eu ainda aguardei alguns minutos para ver se entrava numa trilha sensata, mas depois, sacando qual era o esquema, passei a furar caminho e consegui apresentar o ingresso – não sem remorso pelos empurrões que distribuí.

Duas horas mais tarde, eu continuava uma estátua a trezentos metros do palco. Ouvia o protesto das palmas, já na fase nebulosa do cansaço, em que nada faz diferença. Tinha superado a etapa do desgosto (a cantora não tinha a mínima consideração pelo público!) e da revolta (aquela era uma estratégia para que fossem vendidos litros de cerveja e água durante a espera!). Agora, tudo era irrelevante, e eu estava quase dormindo em pé, quando a coisa começou.

A gritaria seria capaz de quebrar todos os lustres do Palácio de Versailles em mil partículas confundidas com os meus neurônios. Não via mais pessoas – somente mãos, sombras de mãos com celulares e câmeras, numa coreografia fosforescente. Cada palavra de saudação que a cantora quis dizer foi sufocada por urros – e, nas músicas seguintes, aquilo seria de tal forma previsível que eu já conseguia me proteger, tapando as orelhas antes dos últimos acordes.

O que não consegui prever foi o apito que me perfurou o tímpano, às notas iniciais de uma determinada canção. Era uma fã histérica, pouco atrás de mim: gritava com os olhos fechados, sem parar. Depois de conferir se ela realmente não estava sendo estrangulada pelo namorado, apliquei-lhe um pisão certeiro na sandália – dessa vez, sem nenhum remorso. Como ela não pareceu entender a mensagem (continuou gritando no mesmo tom), resolvi mudar de local. Naquele momento, achei que estivesse sob um feitiço, colada ao piso. Tantas horas numa única posição me enraizaram? Mas era apenas o grude que se cria quando cerveja é constantemente salpicada, por latinhas às dúzias, amassadas de duzentas maneiras diferentes.

Ainda faltava um par de músicas – o bis de praxe – quando decidi que bastava. Não sei do que aquelas pessoas seriam capazes ao ouvir os melhores hits, maliciosamente guardados para o final. Provavelmente, algumas morreriam sufocadas, ao engolir o próprio cigarro. Outras arrancariam os cabelos, constatando que a bateria da filmadora tinha acabado. Outras, ainda, seriam acometidas de câimbra, tentando aproximar, além da máxima potência do zoom, o rosto do ídolo nas lentes da câmera – somente para verificar, no dia seguinte, que as fotografias eram verdadeiras abstrações, sob as luzes cambiantes dos spots.

O saldo? Ter chegado destruída em casa, as roupas impregnadas de nicotina e o cabelo com um aroma de chaminé que me fez gastar meio tubo de xampu às três da matina. Mas o pior mesmo foi ter encontrado, naquele show, uma amiga. Dias depois, comentamos a experiência com queixas similares, e fiquei até consolada. Porém, mais tarde a tal amiga me passou por e-mail a agenda inteira dos próximos shows – dizendo que me aguardaria em breve, naquela mesma sala de espetáculos!


Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 30/06/2010, disponível em http://opovo.uol.com.br/opiniao/opiniao/index.shtml)

Um comentário:

  1. Muito bom, muito boom!
    Curiosa por saber de quem era o show (rs)

    Beijo,
    K.

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