LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Os imprevisíveis

Queria às vezes dizer como um querido amigo, que, em seu irônico temperamento, comenta diante dos fatos mais absurdos do mundo: “Nada me espanta”. Porém, vivo me assombrando com as pessoas e seus destinos – sobretudo porque as coisas para mim acontecem de modo tão sensato que (tirando algumas raras surrealidades) minha vida pode ser definida como banal. O espanto surge quando percebo que para muita gente a situação é diferente. Quando penso nos colegas de infância ou adolescência, por exemplo, constato que muitos já deram guinadas loucas de profissão ou estilo.

As notícias vão surgindo aos poucos, em encontros rápidos, quase todos por acaso. Creio que primeiro me deram informações sobre certa menina da escola. Na época, tínhamos dezessete anos, e ela era a garota mais feminista que eu conhecia. Bonita e esnobe, sentia prazer em humilhar o pobre rapaz que a namorava. Pois ela não chegou a fazer vestibular – para o qual, aliás, nunca teve planos. Engravidou naquele mesmo Natal, mudou-se para outra cidade e teve trigêmeos. Pouco tempo depois, descobriu-se lésbica e separou-se do rapaz, que (imagino) deve ter ficado humilhadíssimo.

Outra beldade do colégio teve um destino ingrato: ela era a rainha da beleza no primário, a escolhida para os papeis de princesa no teatrinho das férias. Não podia imaginar que um acidente com explosivos, numa remota festa de S. João, a deixaria desfigurada. Várias plásticas mais tarde, ela ainda não admite sair às ruas de Paris (onde hoje mora) sem uma máscara. Entretanto, leva uma boa vida, trabalhando em casa como tradutora – sem falar que seus belíssimos e delicados pés servem de modelo para uma famosa marca de hidratante francês.

Quanto aos rapazes, lembro um conhecido da vizinhança, que atualmente é cozinheiro num restaurante croata: está feliz e sem a mínima saudade das bandas de cá. Um colega de pré-universitário, traçado para ser médico por pressão da família, acabou se tornando um badaladíssimo DJ em São Paulo. E outro dia reconheci um garoto tímido da minha oitava série, pela televisão: apesar de celebrado como o primeiro violino de uma respeitada orquestra, soube, por seus parentes, que ele continua com tendências suicidas, principalmente antes dos concertos de estreia.

Todos esses episódios são espantosos para mim, às vezes inverossímeis... Se fosse inventá-los num conto, talvez hesitasse, achando tudo exagero. Mas a vida pode ser surpreendente, e não importa que o caminho venha por escolhas conscientes ou por forças involuntárias. Sempre admiro os imprevisíveis, aqueles que vivem mergulhados num tipo de ficção. Eles conseguem, de algum modo, transformar a rotina num gesto de autonomia.

Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 08/09/2010. Disponível também em http://opovo.uol.com.br/opiniao/opiniao/)

3 comentários:

  1. Ei, preciso comentar! Quando leio essas tuas crônicas, em algumas, fico procurando o que é verdade e o que é ficção. Fiz o mesmo com esta e pensei que, afora o da menina que era feminista - risos! -, todos os outros casos fossem mentira. Mas aí eu me lembrei do que você falou acerca dos relógios da tua casa, e achei por bem dar crédito às histórias. Hehehe! Beijos! =*

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  2. Oi, Tércia. Crônica de estilo leve e assunto intrigante. Às vezes o destino é tão forte para alguns que parece mesmo ficção. E quando é ficção julgamos inverossímil. Você tem razão, o ser humano será sempre imprevisível.
    bj
    Carlos Vazconcelos

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