LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Os livros e os lugares

Os livros evocam os lugares – de um modo direto, pela descrição de continentes, países ou interiores domésticos. É assim que normalmente aprendemos a viajar por uma geografia de letras, antes de imergir no mundo propriamente dito. Podemos nos tornar íntimos da Sibéria, por exemplo, sem nunca termos ido lá: bastam certos contos russos, extremamente amados, para criar a sensação de familiaridade. Óbvio que a realidade, assim chamada, será sempre um tanto diferente – mas, para os leitores, os relatos às vezes são tão intensos, que se tornam mais verdadeiros que a própria paisagem. Se esta um dia é encontrada ao vivo, pode ser vista como uma cópia da ficção, e não o contrário.

Entretanto, para além deste aspecto, há os lugares que ambientam a leitura e que, de algum modo, colam-se à experiência de uma história. Falo dos ambientes escolhidos para o ato de ler: circunstanciais ou ritualísticos, confortáveis ou improvisados... Em mim, o cenário funciona feito moldura, acompanhando a memória. Assim, A paixão segundo G.H. lembra um passeio de ônibus ao sol, o trajeto que eu sentia no corpo mas não na mente, preocupada em fixar (apesar dos solavancos do veículo) as palavras da Lispector. O evangelho segundo Jesus Cristo me transporta à casa materna, à brisa na varanda fresca, onde lia me balançando na rede. Crime e castigo me lança aos primeiros dias de universitária, descobrindo a biblioteca, assim como também Se um viajante numa noite de inverno – mas este, do Calvino, eu li ao ar livre, num banco do Bosque de Letras.

Tive inúmeras experiências assim, todas afetivas e algumas curiosas, como aquele episódio do domingo na casa de praia de certa amiga. Havia muita gente convidada, desconhecidos que adoravam churrasco e música duvidosa. Tentei disfarçar o ânimo com umas conversinhas básicas, mas em pouco tempo me escondi num canto à sombra, para abrir um livro (carrego sempre algum na bolsa – em qualquer bolsa, mesmo nas de praia). Em minutos, fui descoberta pela amiga, magoada porque concluía que eu não estava gostando da casa. Ao contrário, respondi: agora é que eu comecei a gostar. O livro era Diário de um fescenino, do Rubem Fonseca, e tinha uma capa mais azul que a água da piscina...

Na maioria do tempo, porém, leio em espaços bem comuns: no meu quarto, na sala dos professores ou até no trânsito, conforme confessei em crônica anterior. Esses lugares, de tão frequentes, sofrem uma espécie de neutralização. Não costumo carregá-los na memória da leitura. Esta acontece como uma refeição, cujo sabor depois recordo, mas sem atentar para o restaurante onde ocorreu. É cômodo que seja assim, pois não teria condições de tornar marcantes todos os livros que já li, junto com todos os ambientes em que eles foram lidos. Resta-me, portanto, eleger uns poucos que irão comigo para hotéis e consultórios médicos, para filas de teatro ou cafeterias. Nessa lista, há vários que são estrategicamente diminutos: os livros de bolso, que têm a propriedade da discrição e foram feitos para nos salvar de palestras aborrecidas e reuniões compulsórias. A esses, presentes em todos os momentos burocráticos da minha história, dedico – além do amor – a maior gratidão.

Tércia Montenegro (Crônica publicada em 29/09/2010, na coluna Opinião, do jornal O Povo. Pode ser lida também em
htttp://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/09/29/noticiaopiniaojornal,2047250/os-livros-e-os-lugares.shtml)

4 comentários:

  1. A Montanha Mágica aconteceu na varanda lá de casa; Irmãos Karamazóv no meu quarto. Escola das Facas eu lia sempre no trânsito, e de vez em quando ainda leio (nunca terminei de ler um livro de poemas, não se termina de ler um livro de poemas, ele é infinito sempre). O Som e a Fúria, meu Deus, esse foi uma febre demoníaca, de um só dia, no parque cesamar, em Palmas - TO. Isso para não falar de tantos outros, que me remetem lugares, sabores (Os Moedeiros Falsos me tem gosto de sorvete de morango, na memória), sons etc. etc.

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  2. Que sutileza pra falar dos livros e de "suas" vivências com eles!
    Simplesmente adorei,percebo que as emoções que a leitura nos proporciona é fundamental para fixar as informações e deixar-nos literalmente viajar por outros lugares.
    Apesar da timidez,não tive como não comentar...

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  3. Gostei desses comentários sobre o momento das leituras. Penso que isso diz muito. Lembro de ter ficado um bom tempo parado, quase hipnotizado, quando concluí o Grande Sertão: Veredas. Lembro de noites em claro, silenciosas, cheias de cumplicidade e de tardes largadas de quando eu passeava por antologias de Vinícius, Drummond e cia. Isto lá na adolescência. Bons momentos, ótimos lugares (dentro/fora da alma). Abraços!

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  4. Quando concluí Crime e Castigo, a mente ficou tão repleta que me senti vazio pelo resto do dia, um vazio habitado.
    Os pores do sol da Ibiapaba ainda hoje se confundem, em meu espírito, com o amarelo do cacau do Terras do Sem-Fim, de Jorge Amado.
    Abraço.

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