LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Os agelastos

OS AGELASTOS

No livro A cortina, de Milan Kundera, encontrei uma passagem que me fisgou, numa imediata e total concordância. Diz o autor tcheco: “Existem pessoas cuja inteligência admiro, cuja honestidade estimo, mas com as quais me sinto pouco à vontade; censuro minhas opiniões para não ser mal compreendido, para não parecer cínico, para não magoá-las com palavras levianas. Elas não vivem em paz com o cômico.” Tais indivíduos são chamados de agelastos, conforme o neologismo criado por Rabelais, para designar “aqueles que não sabem rir”. Ora, Kundera, nesta curta reflexão, tocou num ponto que me parece fundamental na existência: a necessidade do humor – e o consequente incômodo diante dos que não sabem praticá-lo.
            Claro que o riso requer ocasião propícia, e o tema que diverte uma pessoa pode soar desprezível para outra. Mas, longe de especificidades, os agelastos são o tempo todo austeros, compenetrados e sensatos. Na companhia deles, qualquer um se sente bobo ao arriscar uma anedota. Em vez da cumplicidade, tem-se como resposta um olhar de censura, acompanhado de um suspiro. Os agelastos pensam que os bem-humorados são imaturos e perdem tempo com amenidades.
            Ao contrário, muita gente exercita a inteligência através do humor, estabelecendo determinadas ligações entre assuntos, percebendo sutilezas invisíveis para os outros... Óbvio, entretanto, que o território do humor não escapa de estranhezas, e nem todo mundo que ri é necessariamente simpático ou extrovertido. Às vezes uma gargalhada pode dar medo: pensem, por exemplo, no Coringa. Mas nem precisamos apelar para a ficção; na vida corriqueira, quem nunca conheceu alguém com um riso sinistro ou talvez diabólico?
Lembro que certo dia eu conversava com um professor de mecatrônica. Ele me falava algo sobre sistemas robóticos, em profunda seriedade. De repente, uma criancinha que passava ao nosso lado caiu do skate e esborrachou-se no chão. O professor explodiu numa risada hedionda, olhando para o menino – que, lógico, saiu chorando. Poucos segundos depois, eu também dava o fora, para não participar daquele senso de humor bizarro.
O riso (e seus motivos) sempre carrega marcas pessoais. Mas os agelastos nunca se expandem em qualquer forma de alegria, e são esses os indivíduos de fato tristes – embora eles prefiram o termo “sérios” ou “circunspectos” para definir-se.

 Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
Crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/09/14/noticiaopiniaojornal,2297910/os-agelastos.shtml)

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