LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sábado, 12 de novembro de 2011

Sławomir Mrożek


Estive lendo recentemente os ótimos contos deste autor polonês, que não conhecia até encontrar uma edição em língua espanhola de El Árbol. Como suspeito de que não existem traduções para o português deste livro, aventuro-me no gesto de eu mesma traduzir alguns destes contos. Escolho os mais curtos e espirituosos, para a diversão de vocês. Eis o primeiro presente de Sławomir Mrożek:




IMMANUEL


– Que é isso? – exclamou o produtor depois de dar uma olhada na primeira página do roteiro – Está de pé e pensa? E por que não de noite?
– Pensa, porque assim começa tudo. E tem que ser de noite, porque ele deve ver as estrelas. No livro está claramente: “O céu estrelado sobre a minha cabeça e a lei moral no fundo do meu coração.”
Tratava-se de uma adaptação cinematográfica da Crítica da razão pura de Immanuel Kant.
– Está de pé! Mas se numa película tem que haver movimento, é você um principiante ou o quê? Que caminhe, ao menos; ou melhor, que corra, sem fôlego, porque talvez alguém o persiga. Isso dá dinamismo e desperta o interesse do espectador. Pode ser de noite, se quiser.
– Mas se corre, não pensa, porque não tem tempo.
O produtor sumiu nos próprios pensamentos, como Kant fizera nos outros tempos.
– Já sei. Mudaremos a situação. Kant está de pé na beira de um bar, com a barba por fazer, porque tem problemas. Vamos ver, vamos ver. Por que usa peruca? Era calvo ou o quê?
– É um filme de época, histórico.
– Você ficou louco? Quer fazer Os três mosqueteiros ou o quê? Vamos transportá-lo para os tempos modernos. Noite, num bar, vários tipos ao redor, compreende? A vida em si.
– Mas o que acontece com as estrelas?
– Muito simples. No bar existe um televisor, precisamente na Guerra das galáxias. Kant está assistindo, ou seja, vê as estrelas.
– E a lei?
– Que lei?
– “A lei moral no fundo do meu coração.” Ele escreveu isso claramente.
– Sem problema. O sheriff entra no bar e Kant sente medo porque não tem a consciência limpa. O melhor será a droga.
Folheou umas quantas páginas do roteiro.
– “Imperativo categórico?” O que é isso? Algo relacionado com o imperalismo? Não estaria mal.
– Não sei, mas me parece que se refere a se estar obrigado a fazer algo.
– Claro que está obrigado a fazer algo. A mudar este roteiro. Aqui Kant diz: “Este é meu imperativo categórico”, imediatamente depois de lhe ter dito que não se casará com ela. Isso não pode ser; está muito frouxo.
– Por que muito frouxo? Mas se ela o interessa.
– Mas o sexo normal já não interessa a ninguém. Kant tem que ser ao menos bissexual. Acrescentaremos um sobrinho.
– Por que um sobrinho?
– Porque será menor de idade. Kant é seu tio e, de quebra, teremos também um incesto. Agora tudo se encaixa: o sobrinho é um drogado, Kant lhe proporciona a droga e por isso tem medo do sheriff.
Terminamos a película em duas semanas. Chamava-se Meu nome é a existência, porque desde o princípio se tratava de uma película intelectual, por isso nos baseamos em Kant. Mas apesar disso tivemos um grande êxito de público. A popularização da cultura começa a valer a pena.

Sławomir Mrożek


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