LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

domingo, 18 de dezembro de 2011

De volta a Dalí (com uma pitada de Lorca) - ou o contrário

Tirei o fim de semana para saborear os efeitos da sexta-feira à noite, quando tive a alegria de me encontrar com os amigos Sérgio e Roberta. Não bastasse o jantar - com que Sérgio se firma como excelente chef, elegante e poético na criação de um menu inesquecível -, ainda recebi um maravilhoso presente, trazido da viagem espanhola que os amigos fizeram: Cartas escogidas, do García Lorca. Já comecei a ler parte dessa correspondência, que me confirma a ideia de que os artistas são avessos às coisas práticas e adeptos dos grandes tormentos da alma. Lorca, ainda estudante, mal suportava as exigências da família, para que ele  completasse os estudos e tivesse uma carreira formal. Assim ele desabafa numa carta dirigida ao pai: "A mi ya no me podéis cambiar. Yo he nacido poeta y artista como el que nace cojo, como el que nace ciego, como el que nace guapo. Dejadme las alas en su sitio, que yo os respondo que volaré bien." E, em outro momento, um pouco antes, sua reflexão sobre a existência atinge um rasgo dilacerante: "Mi tipo y mis versos dan la impresión de algo muy formidablemente pasional... y, sin embargo, en lo más hondo de mi alma hay un deseo enorme de ser muy niño, muy pobre, muy escondido. Veo delante de mí muchos problemas, muchos ojos que me aprisionarán, muchas inquietudes en la batalla del cerebro y corazón, y toda mi floración sentimental quiere entrar en un rubio jardín y hago esfuerzos porque me gustan las muñecas de cartón y los trasticos de la niñez, y a veces me tiro de espaldas al suelo a jugar a comadricas con mi hermana la pequeñuela (es mi encanto)... pero el fantasma que vive en nosotros y que nos odia me empuja por el sendero. Hay que andar porque tenemos que ser viejos y morirnos, pero yo no quiero hacerle caso... y, sin embargo, cada día que pasa tengo una duda e una tristeza más. Tristeza del enigma de mí mismo!"
Essa leitura de Lorca invariavelmente me leva de volta a Dalí, cujo Diário de um gênio conheci poucos meses atrás (confira os comentários neste mesmo blog). Óbvio que são dois artistas distonantes, com temperamentos e estilos bem diferentes - mas, se existe uma atmosfera nacional para a criação de gênios poéticos, sinto que ambos compartilham da mesma bênção e se tornam irmãos em algum ponto inominável. Aliás, para adensar ainda mais essa sensação, estou com dois filmes à espera para hoje e amanhã: Ensaio de um crime, do Buñuel, e Poucas cinzas, de Paul Morrison. Os dois foram recomendados pelo Sérgio e, embora eu já conhecesse o primeiro, senti uma imensa vontade de revê-lo agora (principalmente para inserir o Buñuel na trindade espanhola). Quanto ao segundo filme, parece que distorce um pouco as relações entre Dalí e Lorca, em nome de um sensacionalismo homossexual (mas ainda não o vi, para opinar a respeito). De toda forma, a gente sabe que muitos filmes de pretensão histórica escorregam na liberdade dramática, pois de perto nenhuma vida tem glamour hollywoodiano. É preciso assistir a esses filmes com ressalvas, portanto. Ontem, por exemplo, eu vi A última estação, que trata dos últimos dias de Tolstói. Apesar da ótima caracterização do ator principal, do cenário e figurino perfeitos, fiquei incomodada com o fato de os atores falarem inglês - e também tenho que dizer que a tal Sofia, esposa do escritor, não tinha um comportamento verossímil em certas cenas...Mas - o que se pode fazer? É preciso dar um desconto, porque muita coisa surge devido às intenções comerciais que motivam essas obras.

Um comentário:

  1. Querida, a presença de vocês fez da noite memorável. Fico muito feliz com a sua distinta referência! E que maravilha que o livro já lhe traz bons caminhos... Tinha certeza de que você gostaria. Depois me diga o que achou do "Ensayo de un crímen" e do "Poucas Cinzas". Beijos!

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