LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

De volta ao mar, Moacyr (II)

Soube, agora há pouco, da notícia, e parece que me vejo novamente na última ocasião (dois anos atrás?) em que encontrei Moacyr Scliar. Foi na redação do jornal O Povo, numa entrevista ao vivo, pela rádio. A voz serena, a postura de elegância e total simplicidade eram absolutamente autênticas: naquele homem, não havia pose. Fomos almoçar depois num restaurante português, e ele era o mesmo, falando de sua infância, de suas raízes judaicas. Nenhum ranço de vaidade - e isso, num perfil digníssimo. Moacyr era um mistério de personalidade: a lição que ele deixa, para além da escrita, é esta. É possível agir com constante integridade, com firmeza e disciplina, sem se robotizar. É possível ser sensível sem resvalar no óbvio. Acima de tudo, creio que ele se manteve, como bom artista e médico, um grande observador da humanidade. Fazia parte dela, mas sempre com um olhar avaliador - um crítico humilde, um juiz silencioso.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

As fotos da Claudia Andujar

Ontem tive a ótima surpresa de receber o jornal Folha do meio ambiente, do querido amigo Silvestre, e ver lá publicada a minha crônica "Pierre e Claudia". A página, ilustrada com as fotos que vi em exposição (e que motivaram a crônica), criou um efeito especialíssimo! Quando o mesmo texto foi publicado antes, no jornal O Povo, não tinha o referencial imagético, e talvez os leitores tenham sentido essa ausência. Pois vale a pena dar uma olhada no site, conhecer um pouco da obra da Claudia e da história da Folha, que é uma publicação singular:
http://www.folhadomeio.com.br/publix/fma/folha/2011/02/pierre216.html

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

As fotos de Felipe Abud

Não conhecia o trabalho desse fotógrafo até poucos instantes atrás, quando a amigata Carmélia me passou estas imagens lindas. Elas recuperam em mim o sentido de contemplação, que só a arte e natureza podem motivar.




domingo, 20 de fevereiro de 2011

Lixo extraordinário


Não vi o documentário sobre a obra do Vik Muniz, mas ganhei de um querido amigo a edição do Lixo extraordinário. Acabei de ler agora, suspendendo o estudo histórico de arte sob a tutela do Gombrich, para mergulhar em algo contemporâneo, criação da hora.
Já tinha admirado a arte de Vik desde o ano passado, com a incrível exposição de suas fotos no Espaço Cultural da Unifor. Agora, esta compilação de seu trabalho com o lixo só reitera minhas impressões favoráveis sobre ele.
Sinto tristeza e revolta quando ouço algumas pessoas obtusas criticando essa arte como "aproveitadora da miséria" ou coisa do tipo. Como se o artista fosse um tipo de vampiro, sugando ideias do mundo, explorando as imagens anônimas para ele próprio fazer-se famoso. Se assim é, toda arte é vampiresca, e talvez isso possa até embrenhar-se no conceito mesmo de criatividade, que jamais surge desvinculada de motivações. Nem por isso um artista cai em dívida para com a fonte de seus insights, não se torna obrigado ao assistencialismo ou à caridade. Leio que Vik Muniz, de fato, envolveu-se com projetos sociais - mas isso, ao meu ver, não torna sua obra mais digna ou legitimada. Uma coisa está totalmente separada da outra; se o homem sente o impulso de ajudar, isso não é mérito que desencadeie, via de regra, uma arte. Ao contrário, nesse território as boas intenções costumam resvalar para o pieguismo, e grande parte da invenção artística surge mais pelo impacto agressivo que por um confortável sentimento de alívio. Assim, toda essa pauta de ecologia, reciclagem e valorização das camadas sociais mais pobres tem urgência máxima para o planeta. A arte, porém, é algo diferente: é contemplação, e não necessidade. É luxo, sempre, mesmo quando nasce do lixo.
Acho ridículo quem tacha de "burguesa" (naquele desgastado sentido, num perfil de caricatura revolucionária) as iniciativas de um artista como Vik. No fundo, talvez seja a simples inveja, atuando discretamente - pois o mesmo sujeito que critica também é incapaz de fazer algo em auxílio dos catadores, dos miseráveis que vivem no aterro. Seu único prazer é o da retórica vazia, oca e infértil: fala, fala, fala - e, enquanto isso, o artista pensa e realiza, dentro do seu território de liberdade.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Tetro


Ontem consegui um tempinho (faltando à natação) para ver Tetro, no cinema do Dragão do Mar. É um belo filme, com uma irresistível fotografia: dá vontade de ter uma cópia em casa, para ficar parando em inúmeras cenas, que merecem ser contempladas de-mo-ra-da-men-te. A plástica no preto e branco ficou realmente incrível neste filme; acho que só vi coisa tão boa em A fita branca, pelo menos no que concerne a obras recentes. O roteiro, em compensação, não é tão grandioso assim... A história tem bons mistérios, mas falha na verossimilhança do trato humano. O protagonista vive uma fase como louco, interno em manicômio, e depois - fora uns acessos de raiva e misantropia - parece viver como alguém normal, dentro do parâmetro de angústia de um artista fracassado. Também não convence a resolução que fez a mãe de Bennie, o irmão-filho, tomar uma overdose que a pôs em coma por 9 anos. Por que ela tomaria uma atitude dessas? Por remorso, revolta, loucura? Mas tanto tempo depois do acontecimento perturbador, que foi deixar o namorado para casar-se com o pai dele? Uma mulher na vida real conseguiria superar a consciência, se estivesse realmente apaixonada pelo ex-sogro. Se não fosse o caso, o que a impediria de se separar? Algo tão mais simples que o suicídio...
Alguém pode argumentar que a arte lida com clímax, exacerbações que não se encontram na vida trivial - mas o que eu reclamo não é um realismo ingênuo. Quero somente que a história me convença daquele comportamento; não posso aceitar uma reação de um personagem que não parecia predisposto a ela. Isso acontece também quando Bennie ouve Tetro contar a verdade: o transtorno que acomete o garoto (e seu quase-suicídio, igualmente) não corresponde ao temperamento do personagem, fica falso e (com o perdão da palavra) até meio fresco. Resvala num chavão revelador, com aquelas luzes dos faróis dos carros gritando uma metáfora gasta.
Há problemas no filme, portanto, mas creio que eles se concentram na narrativa. A parte fotográfica e a atuação permanecem impecáveis

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Vizinhos

“É dom de Deus não ter vizinhança”, dizia um personagem franciscano que certa vez conheci – e houve um tempo em que eu concordava. Porque experimentei alguns vizinhos medonhos, nos três condomínios em que já morei.

Podem dizer que sou irritadiça e melindrosa, mas o mínimo que exijo de meu lar é privacidade e silêncio. Não consigo, por exemplo, ignorar um desfile matutino de salto alto, com repercussão de martelada, sobre minha cabeça. Infelizmente – oh – há coisas muito piores! Como aquele morador (sempre no apartamento de cima) que arrastava mobília à meia-noite, ou tinha mania de jogar bila para que o cãozinho a perseguisse pela casa toda. Houve um que instalou uma banheira e trouxe como brinde várias infiltrações, propagadas pelo prédio inteiro... Também já amarguei muito sobressalto com vizinhas histéricas, que gostam de chamar os filhos com cada grito que nem mesmo Munch suportaria!

Existem os que cozinham pratos nauseabundos com aroma poderoso; os que instalam karaokê aos fins de semana; os que têm mania de pintar as paredes mensalmente, com tinta intoxicante. E os mais perigosos: os que não cumprimentam no elevador (são os mesmos que monopolizam o elevador, ou o empestam com colônia adocicada, ou arrancam os botões do painel para completar alguma secreta coleção).

Há os que praticam arremesso de embalagem pela janela, todas as manhãs. Imagino que fiquem bem satisfeitos ao encontrar, no pátio, o próprio lixo. Devem conferir os potinhos de iogurte e as caixas de suco com idêntico prazer ao de um bicho farejando a urina com que demarcou o território...

E há os sonâmbulos, que de madrugada assombram os corredores e buscam a vertigem das varandas. Os apressados, que cruzam a garagem com desespero e fúria. Os gatunos curiosos, que furtam extratos bancários da caixa postal. Os adolescentes mudos, que fazem planos pirotécnicos, ou as crianças ociosas, que meditam travessuras... Conheci cada um desses tipos temíveis, mas por sorte também encontrei pessoas discretas e amáveis.

Na minha atual vizinhança, existem fisionomias gentilmente familiares. De todos os que poderia citar, elejo um simpático senhor, que certo dia confessou gostar de minhas crônicas. Em viagens rápidas ao terceiro e sétimo andar, já compartilhamos o encanto pelos textos de Mia Couto e trocamos ideias sobre a multiplicação dos livros – milagre lento que um dia nos tomará todo o espaço de habitação.

Pois a ele, o tal Vizinho Exemplar, dedico as palavras de hoje. Afinal, dom de Deus – cada vez mais raro – é conseguir uma morada tranquila.



Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião do jornal O Povo de hoje. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/02/16/noticiaopiniaojornal,2102936/vizinhos.shtml)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

A Baronesa

A foto que hoje enfeita nosso blog foi cortesia do Daniel Pacheco, que clicou sua gatinha recém-adotada, Baronesa. Esses olhos de um azul-límpido foram feitos para contemplar...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Hermann


Esses meus dias de virose têm tido ao menos um lado produtivo: mergulhei na leitura d'Os sonâmbulos, do Hermann Broch: indicação do Kundera, n'A arte do romance.
A trilogia deste autor austríaco realmente impressiona, mas não porque inove no estilo ou no tema. Ao contrário, a simplicidade do enredo (voltado às miudezas do comportamento humano) e a forma de narrar indicam a pretensão modesta de um bom contador de histórias. No fundo, porém, esta ambição revela-se grandiosa, porque não é nada fácil envolver um leitor. Broch consegue ainda outra proeza, ao lidar com assuntos que envolvem o ridículo. Se levarmos em consideração que a maioria das pessoas considera o cômico como algo trivial ou até irrelevante, vemos como o escritor atinge um ponto culminante. Suas intrigas enlaçam o leitor através da inteligência, não do apelo emotivo. É instigante acompanhar suas críticas implacáveis, seu olhar de feroz ironia sobre o mundo. Além disso, há passagens que se aproximam do sabor machadiano - confira-se, por exemplo, o trecho a seguir:

"Bertrand teve de sorrir e sorriu tão amável e simpaticamente que Joachim não pôde deixar de sorrir também. Assim se sorriram amistosamente e as suas almas acenaram uma à outra pelas janelas dos olhos, um instante, como dois vizinhos que nunca trocaram entre si um cumprimento e por acaso chegam ao mesmo tempo à sacada, contentes e embaraçados com essa coincidência e esse cumprimento inesperado." (p.29)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Linha Férrea

Meu conto Linha Férrea foi publicado na revista eletrônica Caos e Letras. Quem quiser conferir, o endereço é http://www.caoseletras.com/2011/02/linha-ferrea.html

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

As Apolíneas

Semana passada, assisti a dois espetáculos do Oficina Uzyna Uzona, aqui em Fortaleza. As bacantes e O banquete foram o último par da turnê Dionizíacas, que trouxe previsíveis controvérsias e comentários os mais ecléticos. Enquanto fenômeno artístico, as peças apresentadas são marcos históricos, claro – e há muitos méritos estéticos para relembrar. Pode-se falar da impressionante estrutura montada, criando uma nova forma de ser plateia, no Theatro José de Alencar. Ou então, pode-se elogiar a parte musical, com instantes gloriosos, ou quem sabe os recursos cênicos, ou os figurinos...

Nem tudo foi perfeição, porém – e é sempre saudável enxergar os deslizes, para afastar idolatrias. Os problemas com as Dionizíacas estiveram em miudezas técnicas (sobretudo com a sonoplastia) e em momentos de texto vazio, monótono ou – pior – atravessado por lugares-comuns. À parte esses detalhes, o público também atuou negativamente. É tentador confundir subversão com desordem, e imagino que para certas pessoas o espetáculo serviu somente como um pré-carnaval.

Foi no clima de “liberou geral”, por exemplo, que uma adolescente com folhagem na cabeça circulou por todas as partes, durante As bacantes. Louca para ser confundida com o elenco, ela se requebrava em várias direções, pouco se importando com a visibilidade alheia. Depois de desacatar uma funcionária do teatro, ela achou seu minuto de glória ao beijar profundamente um dos atores, no meio do palco.

A diferença entre o talento e a inconveniência é mais sutil do que parece. A festa que o Teatro da Multidão instaura torna-se bela e poética – mas, por mais que os vândalos anseiem, não chega a ser gratuita nem caótica. Existe um paradoxo possível que organiza o orgíaco Oficina, um rigor apolíneo que lhe dá o alicerce artístico. Sim, porque a irreverência, a nudez e o discurso libertário passam por ensaios, treinos e estudos. Nas Dionizíacas vêem-se ingredientes que aparecem n’Os Sertões: as mesmas cenas ligadas a ritos de iniciação, com simulações de sexo, vinho compartilhado, danças, ritmos e culturas que se entrelaçam.

Tais elementos, constantes no repertório do grupo, são uma pista do seu estilo e, mais do que isso, de sua proposta antropofágica. Ora, se há proposta artística, há seriedade – ainda que ela surja disfarçada. Mas como é difícil enxergar as máscaras num corpo nu! Entretanto, elas estão lá: têm de estar, se é teatro.

Se não houvesse disciplina (componente apolíneo) para sustentar o eixo dionisíaco, a equipe do Oficina não divulgaria, no início das peças, instruções de segurança e comportamento, mesmo que de um jeito informal. Não haveria canto em coro, texto recitado (decorado com rigor) nem cenas coreográficas. Não haveria referências contemporâneas nem clássicas – algumas tão discretas que chegavam a enternecer: foi o caso de certa iluminação que, em dado instante, transformou um ator no Baco de Caravaggio, com uvas e vestes iguais às da pintura.

Em suma, negar o profissionalismo do teatro Oficina para reduzi-lo a um delírio é ingenuidade. Essa temporada, Dionizíacas, criou uma celebração dúbia. Dionísio não exclui Apolo; tem de haver muita estrutura para que, em arte, aconteça a ruptura.



Tércia Montenegro (artigo publicado no jornal O Povo de hoje. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/02/02/noticiaopiniaojornal,2097080/as-apolineas.shtml)