LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Resenha d' O tempo

Amigos,

O escritor e crítico literário Rinaldo de Fernandes fez uma resenha sobre meu livro O tempo em estado sólido. Confiram o texto abaixo:

O BIZARRO E O POÉTICO

EM TÉRCIA MONTENEGRO  

  

  
por Rinaldo de Fernandes


É da força dos contrários que Tércia Montenegro extrai a substância de seus contos em O tempo em estado sólido, livro vencedor do Prêmio Governo do Estado de Minas Gerais 2010, publicado agora, em 2012, pela Ed. Grua, de São Paulo.
Tércia é uma contista tchekoviana. Pouco enreda e extrai das situações narradas sentidos fortes, profundos, da natureza humana. Consegue em poucos passos jogar o leitor na interioridade intrincada de seus personagens.
Seus protagonistas, permanentemente, vivem sentimentos antagônicos. Há nos contos uma mistura de afeto e desafeto, de amor e ódio. Acomodam-se, no mesmo enredo, o bizarro e o poético.
Bizarra é a personagem Leila, de "A alma e o peso", como liberada, intensa, é Larissa, em "Pleno trânsito". É muito bem armada a intriga de "As paisagens", em que o trágico e o estético se sobrepõem, quando da visita do protagonista à galeria de arte. "O mágico" é um belo conto, que mistura miséria (a do avô cego de uma garota) e magia (transposta com engenho, na narrativa, para o campo semântico da malícia – a do artista seduzindo a garota para partir com ele). Outro excelente conto é "Serpentina", que flagra o ciúme forte de uma mulher. Mulher e marido estão diante de uma adolescente que, num hotel, morre afogada diante do casal (o marido estava visivelmente desejando a adolescente) – Eros e Tânatos, tragédia e sadismo, porfiam no enredo.
Em "O que reluz e arde no ar", o tema da prostituição é explorado com poesia e sutileza, sem que o narrador deixe de lançar sobre a protagonista um olhar impiedoso, profundamente realista. "Aquarela com bonsai", criando um intertexto com a pintura (como em outros momentos no livro), narra uma cena de sexo a três, da qual participa uma negra bela. Conto bizarro e de atmosfera lírica. "A ignorância" tematiza a incomunicabilidade humana, os silêncios instransponíveis entre os indivíduos.
"Cartografia de instantes" é onírico, com personagem solitária, extraindo do vazio as suas mais fortes sensações (aliás, a solidão é um tema central no livro).
"O lado imóvel", mais uma vez trazendo o intertexto com a pintura, narra a aventura de dois garotos que seguem para tentar pegar os quadros de um pintor (pai de um dos garotos) que foram confiscados e estão no depósito da alfândega. Um enigma envolve os quadros. Trata-se de uma narrativa mais fluída, de ritmo mais acelerado, abrigando o suspense.
Em "A sugestão", o protagonista, um escritor (escritor, pintor ou fotógrafo são tipos presentes no livro), sofre de síndrome do pânico. Conto que flerta com o fantástico. Traz mais uma vez uma situação bizarra, misturando de novo sentimentos opostos – enquanto o marido, inseguro e incerto por conta da doença, segue para um enterro, a mulher o trai num motel. No final, o casal se recompõe na sua (falsa ou fantasiosa) harmonia.
"Carceragem", também inserido no contexto familiar, tematiza a demência, codificada na desarmonia entre duas irmãs. "Exposição" (o próprio título remetendo à pintura) traz um interessante diálogo de um casal sobre sedução e sentimento. "As moedas" narra um crime num circo, de um homem frustrado por não ter filhos. Também é uma narrativa mais fluída, que difere da densidade da maioria dos contos.
"Semelhante ao mar" encerra o volume. Lembra um pouco "Venha ver o pôr do sol", de Lygia Fagundes Telles (de quem, alias, vejo influências em Tércia). A protagonista se dirige para um cemitério, para o velório do pai na capela. Ela carrega um ódio profundo pelo pai, mesmo ele estando morto: “Não aceita a simbólica pazinha de enterrar, nem trouxe flores que derramasse num gesto bailarino”. No fim, a protagonista segue para tentar rever um amor da adolescência. Ódio e afeto (metaforizado na memória de uma paixão) se entrelaçam neste que é provavelmente o melhor conto do livro.
Há ainda nos contos metáforas muito bem elaboradas, que se afinam, perfeitas, precisas, às situações narradas. Tudo isso fazendo de Tércia Montenegro um dos nomes mais expressivos do conto brasileiro contemporâneo. Uma autora para ser lida e aplaudida.

Fonte: http://rinaldofernandes.blog.uol.com.br/ 

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