LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Os sonâmbulos


OS SONÂMBULOS
           
            Talvez, pelo título desta crônica, um voraz leitor pense que vou tratar daquela obra memorável, Os sonâmbulos, de Hermann Broch. Ora, minha pretensão é bem menor: apesar de abordar assunto homônimo e aparentado ao do escritor austríaco (ao menos pelo que há de louco e filosófico neste tema), quero me dedicar ao trivial, à vida rotineira. Sim, porque sonâmbulos existem muitos, aqui mesmo em nossa cidade, em frenética atividade noturna e secreta.
            O mistério das ações realizadas durante o sono escapa às próprias pessoas que executam estas tarefas. Se algum dia chegam a se tornar conscientes do distúrbio, é pelo testemunho de alguém (que obrigatoriamente estava acordado), ou pelo registro de câmeras infiltradas sabe-se lá onde. Há os que cozinham durante o sono, os que se entregam a ensaios de mímica e os que se contentam em abrir gavetas à procura de um sapato. A maior parte desses atos deixa pistas, marcas que no dia seguinte se tornarão estranhíssimas. A polícia é chamada; culpam-se familiares ou vizinhos, até que o ingênuo sonâmbulo perceba que o problema está nele próprio.
Dificilmente a cura existe: conheço um homem tentou de tudo – da acupuntura ao exorcismo – mas, por fim, resignou-se. Pôs rede de proteção na varanda e ferrolhos duplos nas portas, para conter seus impulsos oníricos de fuga.
            As histórias de noctambulismo, porém, às vezes são poéticas e artísticas. Determinada senhora, que durante a adolescência desejou ser dançarina, passa as madrugadas bailando enquanto dorme – e o detalhe é que segue a coreografia de Pina Bausch no espetáculo Café Müller: dança com uma camisola branquíssima e muito fielmente, mas não há quem lhe tire as cadeiras do caminho. Assim, o exercício termina com vários hematomas, numa sala destruída... E o que dizer do pintor francês Georges Seurat? Sabe-se que alguns de seus quadros – principalmente os delicados nus do final da década de 1890 – foram pintados durante sessões sonambúlicas. É de se admirar tanta proeza, sobretudo quando sabemos que a técnica do pontilhismo cria uma textura tão detalhada!
            Entretanto, existem sonâmbulos do mal, figuras sinistras que se aproveitam do sono para justificar todo tipo de atitude. Nunca ouviram falar naquele político que supostamente tinha o hábito de assinar cheques em branco, enquanto dormia? Ele teria beneficiado inúmeros comparsas, que ficavam à espreita, na porta de seu quarto – mas há quem diga que essa versão apenas encobre uma corrupção safada e bastante consciente (como todas as que acontecem, aliás). Outros casos, de assassinos a adúlteros, têm sido inocentados quando se atribui ao sono a responsabilidade pelos atos. Por enquanto ainda são raros esses episódios de absolvição na justiça brasileira – o que nos livra de uma sociedade em que a violência, a longo prazo, seria atribuída ao delírio de adormecidos sanguinários. Por enquanto, basta que nos preocupemos com os insones em sua vigilância implacável.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em  http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/07/04/noticiasjornalopiniao,2871643/os-sonambulos.shtml)






           








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