LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O desnorteio


O DESNORTEIO

Talvez não haja grande diferença entre a sensação trazida por uma catástrofe natural e outra, criada voluntariamente por alguém. Um furacão furioso também pode se instalar nas fissuras humanas: tempestades nascem dentro de casas, vendavais que arrebatam ânimos, sopram palavras, cavam abismos. De repente, você está num território que se transformou: o terreno sólido virou desastre, cheio de ruínas. Os objetos parecem cacos, resquícios que se penduram nas paredes ou ficam esfriando nas gavetas, como fotografias que não se quer mais ver. Cenas e rostos reverberam, criando fantasmas – ou serão vapores de lembrança? E, antes disso, houve presságios, brigas inexplicáveis de gatos mansos, houve olhares furtivos e ausentes, a falta de gestos que primeiro não eram notados porque já existiam, espontâneos. Assim a natureza de repente muda: o céu tinha uma cor esquisita, disseram, antes do tsunami. Ainda era um céu, acima de nossas cabeças; nada extremo aconteceu como anúncio; não foi preciso que se revirasse a geografia nem que as nuvens escrevessem alfabetos pelo ar. Tudo sutilíssimo; apenas uma cor diferente, um tipo de vento que jamais arrepiou daquela maneira. E, minutos depois, a onda gigante arrastando sem trégua, tão violenta e poderosa quanto uma mensagem definitiva.
E por falar em mensagem, eu procuro um livro-bússola, impossível. O poeta Vinícius de Moraes não deixou o contraponto, não escreveu Para perder um grande amor. Mário Faustino tampouco descobriu a solução em oráculos, a verdadeira “conjunção de agouros” que tanto pode atormentar, no poema “O homem e sua hora”. Fernando Pessoa – oh, meu Deus! – nem ele, com todos os seus geniais desdobramentos, é suficiente para lidar com desassossegos. Tem razão meu amigo Rafael Martins quando, numa de suas peças teatrais, diz que não há um procedimento para a vida. Como não há maneira de se salvar de calamidades – acrescento. Alguns elencam prevenções, treinamentos que dão uma (falsa) segurança; há os que constroem trincheiras, abrigos subterrâneos, pintam rotas de fuga e aprendem a se manter deitados em caso de relâmpago ou terremoto. Mas nada disso garante. A natureza, quando chega a seu limite, é implacável, embora aja somente como justiceira: sua violência é sempre uma resposta.
Quando se cria intencionalmente um desnorteio, a princípio tudo pode parecer diferente; pelo menos, a causa do desastre foi egoísta: alguém escolheu, hesitou no seu milésimo de ponderação – e depois decidiu. A sua decisão estourou uma represa, fez caírem aviões, despedaçou estilhaços de bomba, deixou um cogumelo de fumaça parada sobre o mesmo local, durante muito, muito tempo. Estava lá um homem que apertou o gatilho, o detonador – mas ele não importa. A única coisa que permanece é o choque, o inesperado desequilíbrio diante da catástrofe. Pelo mundo inteiro, creio que a sensação deve ser idêntica.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)


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