LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O turista depredatório


O TURISTA DEPREDATÓRIO

Apesar de ver muitas considerações sobre o turismo feitas em livros, reportagens ou textos de aventura, o assunto me parece inesgotável. Lembro que anos atrás eu e meu amigo Juva tentamos elaborar o “Decálogo do perfeito turista” enquanto rodávamos a caminho de Mafra. “O turista não vê, fotografa”, propôs ele, ironizando o meu hábito de estar sempre com a câmera ligada. “O turista segue as setas”, continuei, apontando para a sinalização na estrada – e assim nos divertimos, criando uma lista que nunca chegou a terminar.
Recentemente fui levada a refletir sobre o “turista depredatório” – categoria que se define por depredar monumentos, obras históricas ou tesouros de nações alheias, sendo este o seu principal objetivo nas excursões mundo afora. O amigo Renato me falava disso a propósito de uma pessoa, que certa vez roubou ossos sírios de um cemitério bizantino, para usá-los como amuleto. Em troca, contei-lhe uma cena ocorrida em Jerusalém: apesar das proibições do guia, interditando qualquer proximidade com as árvores sagradas, vi um homem arrancar um ramo de oliveira, e de modo tão excitado como se estivesse roubando o diamante Orloff.
Quando se trata de elementos da natureza, aliás, esse turista parece que se torna superdepredatório. Os sistemas de segurança ao ar livre são ineficazes; não há como instalar sensores, redes de choque ou barreiras para impedir que conchas, torrões de areia ou cascas de tronco sejam surrupiados. Mas quem se importa com essas coisas? – indagará alguém. O turista depredatório – garanto. Embora ele encontre idênticos produtos no próprio país, acredita que aquela folha específica, dos Jardins de Dessau-Wörlitz, será diferente de todas as outras. Ele precisa arrancá-la e escondê-la, como um verdadeiro malandro. Quer o souvenir gratuitamente, seja porque sabe que não está à venda (ou, se estivesse, apenas ricos museus conseguiriam comprá-lo), seja porque tem uma tendência cleptomaníaca lá no fundo da alma. 
Sem tecnologia para deixar a natureza tão protegida quanto o acervo do Hermitage, os sítios turísticos contam somente com a inspeção humana. E às vezes ela se torna tão minuciosa, movida por um instinto de preservação tão exaltado, que o profissional responsável pela tarefa se torna um guia econazista. Um deles certamente trabalha no Morro do Pai Inácio, na Chapada Diamantina. Lá, em certa ocasião uma inocente francesinha arrancou uma flor e se pôs a brincar com as pétalas. O guia cuspiu-lhe ofensas que ela não entendeu completamente, por causa do idioma – mas o fato é que a francesa acabou por enfiar de novo a florzinha no chão, na tentativa de devolver o objeto que nunca deveria ter tocado.
Renato me falou de outros casos, como o furto a azulejos do século XVIII no Convento de São Francisco, em Salvador, e o roubo de uma pedra da Casa da Torre de Garcia d’Ávila, além da apropriação de seixos pré-históricos em diversos parques nacionais. Ele, que conhece vários turistas depredatórios, já pensa em fazer um estudo sobre a pilhagem como elemento motivador de viagens...

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site.)

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