Antigamente, as princesas perdiam o sapatinho de cristal numa apressada fuga à meia-noite – e apressados eram nossos olhos sobre as páginas. A leitura fazia esquecer que, ao contrário da personagem, tínhamos de calçar as famigeradas botas ortopédicas. Quem viveu a infância nos anos 80 sabe do que falo: a obsessão por eliminar joanetes e construir arcos nos pés fazia com que as meninas desde cedo fossem ao balé para fins anatômicos. Andar nas pontas era exercício obrigatório e – como se não bastassem as unhas encravadas que iriam nos perseguir vida afora, junto com palmilhas e demais apetrechos – havia as botas. Numa era que conhecia o “show”da Xuxa, nem mesmo os coloridos coturnos das paquitas disfarçavam o padrão opressor daquela moda.
Muitos anos depois, posso dizer que nunca aderi ao estilo country por motivos traumáticos, mas atravessei a adolescência sonhando com um baile de vestidos esvoaçantes e calçados delicados, da textura de uma nuvem. Bem no princípio da fase em que os hormônios começam a pipocar, soube que minha família executava uma espécie de introdução da mulher na vida adulta. O ritual consistia em ensinar à jovem – às vésperas de seu décimo quarto aniversário – como andar de salto alto. Vi minha irmã equilibrar-se com dois livros em cima da cabeça, usando o modelo-agulha de minha mãe. Depois, acompanhei duas primas cumprirem o mesmo ritual. Havia tropeços, pés virados, mas com algumas tentativas a garota conseguia andar de um jeito espontâneo, sem deixar os livros caírem.
Para a minha data, foram convidados vários familiares. Depois do trajeto no corredor de casa, haveria um bolo e a entrega do presente – os sapatos brancos e delicados com os quais eu tanto sonhara. Mas as fatalidades sempre ameaçam ocasiões desse tipo, e poucas semanas antes do dia eu levei uma de minhas incontáveis quedas, rompendo um ligamento no tornozelo. O desfile foi cancelado, e quando a fisioterapia me deu alta havia passado tanto tempo que todo mundo perdeu o gosto.
Nunca consegui me equilibrar direito com salto alto. Quando me queixo, invejando amigas que atravessam calçadas de pedras pontudas, recebo um displicente: “Ah, mas você é alta!” O conto não diz se Cinderela usava saltos, nem se precisava disso pela pouca estatura. De qualquer modo, os príncipes encantados já não perseguem a princesa que calça um número mínimo, em modelo de cristal. Aliás, príncipes hoje são os homens que nos descalçam e sabem que o amor começa pelos pés, com uma relaxante massagem...
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje na coluna Opinião, do jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/03/16/noticiaopiniaojornal,2113758/sobre-reinos-e-sapatos.shtml)
Nenhum comentário:
Postar um comentário