LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Assim nasce uma escritora

O velho Machado já repetia que o menino é o pai do homem: experiência sábia quase sempre comprovada. Os gostos da infância acabam sendo os mesmos da vida adulta, e o temperamento de toda pessoa cedo se anuncia. Há, lógico, os casos misteriosos, de guinada brusca, quando o sujeito parece entregar as rédeas ao cavalo cego do destino – mas, ainda que tudo pareça absurdo e ocasional na trajetória de um indivíduo, ao final percebe-se que não é. Houve sempre um propósito, camuflado embora, em cada atitude impulsiva ou aparente disparate. Quando se revisa o percurso biográfico de alguém, o que sobressai é a sensação de coerência pelo conjunto: aquele caminho abriu-se neste outro, esta estrada levou àquele trajeto... e assim por diante.

A história de Rachel de Queiroz ilustra bem essa ideia de Grande Narração, que condensa a vida de qualquer pessoa. Imagine o ser humano no papel de um personagem convincente. Como nasceria, dentro de um relato, uma protagonista que fosse escritora? Uma brasileira no começo do século XX, nascida com o propósito de inovar a literatura do país? Pensamos logo numa figura de caráter forte, moldada dentro de uma família que lhe servisse de inspiração e, ao mesmo tempo, lhe insuflasse liberdade criativa. Assim foi com Rachel. Criou-se em berço de intelectuais, com uma bisavó prima do escritor José de Alencar, com o pai juiz e professor, ensinando-lhe em casa os grandes feitos da humanidade, e a mãe, tão bela e jovem, sugerindo leituras e, mais tarde, opinando em seus primeiros escritos.

O sertão foi um capítulo à parte. Decisivo. A menina viu a luz do mundo em Fortaleza, a 17 de novembro de 1910 – mas o interior do Ceará seria o espaço que lhe abrasaria a alma. Quixadá, cidade em que os Queiroz tinham profundas raízes, era a sua terra prometida. Afinal, certa tarde, a garota Rachel fez por ali um passeio inesquecível. Na companhia do pai, selou o Kaiser, um belo garanhão inglês, e saíram num trote suave. Em frente à Lagoa do Seixo, o pai lhe disse: “Aqui você um dia terá sua fazenda.” Era a promessa de que o sertão nunca lhe sairia da existência, e ali, muitos anos depois, a autora de O Quinze realmente ergueu os alicerces de uma construção.

Mas Rachel também viajou muito durante a infância. Com a família, residiu no Rio de Janeiro e, depois, em Belém. Sempre recordaria o trajeto que, aos sete anos de idade, a levou ao Rio. Em determinado momento, quando passavam entre Sergipe e Alagoas, o piloto do navio a chamou, para que ela visse o rio São Francisco. A menina sentiu escapar o fôlego, diante da beleza da paisagem. Tempos adiante, seria numa idêntica viagem – também de navio, para receber o prêmio da Fundação Graça Aranha – que Rachel, já romancista, conheceria o seu primeiro marido, em Recife.

Não foi com ele, porém, mas com seu segundo esposo, que Rachel construiu a fazenda em Quixadá. Aquela não virou uma residência permanente, mas era um território de lembranças, sempre visitado com o sabor das saudades. O nome, Não me deixes, surgia como um apelo da própria terra a sua filha escritora, viajante de tantas partidas, moradora de vários lugares. Assim, cada vez que Rachel retornava a essa fazenda, sentia que aquele era o seu local definitivo. Mesmo que depois tornasse a partir, olhava para trás ao cruzar os portões e lia a placa: Não me deixes. Poderia responder então em silêncio: Não, não te deixo. Levo-te comigo, no coração. E fico também um pouco, lanço raízes invisíveis, mas raízes que tu podes sentir, minha terra, pulsando dentro de cada um dos teus grãos. Nenhuma de nós jamais deixará a outra.

A literatura de Rachel seria uma prova de sua imersão no ambiente sertanejo. Personagens e paisagens de êxodo, tristeza e dor, no contraste com a abundância de épocas férteis – tudo isso nascia da observação e da pesquisa, no gesto criativo da autora. Um gesto que teve força revolucionária dentro do regionalismo dos anos 30, então no princípio quando O Quinze se anunciou. Era a fase madura do Modernismo, e um dos nomes mais importantes seria o dessa jovem, professora e cronista. Rachel de Queiroz estreava no romance com um ímpeto estabelecido, um estilo que não perderia de vista até o seu último título, sete décadas mais tarde.

Os episódios de uma vida são múltiplos e provavelmente incontáveis. A memória, por outro lado, existe apenas por ser seletiva. Podemos então selecionar alguns momentos representativos da infância de Rachel como prova do que ela viria a ser, da escritora anunciada que já trazia em si. Pensamos na leitora voraz, decifrando, aos cinco anos, trechos do Ubirajara. Na menina junto com os irmãos e primos, em recitais de poesia, ou criando teatrinho para os pais. Na garota com seus cadernos pautados, rascunhando os primeiros textos, que escondia de todos – a mesma que, pouco depois, decidida, começaria a enviar crônicas para os principais jornais de sua cidade.

Em cada detalhe já sobressai, mesmo que tímida, a inquietação desse algo a mais que define o artista. Algo que se busca, que se pretende criar porque é preciso que exista – e, se perguntam por quê, o artista talvez responda que precisa criar pelo valor da beleza, ou por um compromisso humanitário, ou pela simples diversão... Mas subjaz no seu íntimo a ideia de que não há resposta. Há apenas o impulso, a inquietação. O que explica que Rachel, em muitas entrevistas, confessasse que escrever era, para si, uma coisa cansativa. Mas prosseguia escrevendo. Não podia, como artista, deixar de fazê-lo.

Não existe receita única para se fazer um escritor, óbvio. Mas juntar os elos – família, espaço, convívio com a literatura – parece a tendência mais simples, de resultado porém incerto. A “fórmula” carece de uma química específica, intangível e secreta. Não se pode nomeá-la, mas é bem fácil reconhecê-la. Desde a infância de uma pessoa, a Grande Narração se constrói, injetando a cada dia um pouco do que, no futuro, lhe será de proveito. Rachel de Queiroz, como personagem, é um bom exemplo. Com sua história, percebemos que só se escreve aquilo que muito antes, em vida, tinha já sido inscrito.


Tércia Montenegro (crônica publicada em fascículo especial em homenagem a Rachel de Queiroz, no jornal O Povo, em 14/04/2010)

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