LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Macedonio Fernández


Estive lendo o Museu do Romance da Eterna e desta incrível obra extraio algumas passagens singulares. É recomendável ler cada uma e depois pôr-se a meditar sobre o componente irônico ou sábio (e talvez um se confunda com o outro):

"É indubitável que as coisas não começam; ou não começam quando são inventadas. Ou o mundo foi inventado antigo."

"O suicídio fez glorioso algum escritor medíocre (...). Porém mais precauções tomei contra o verdadeiro suicídio, que é viver depois de fracassar. Corrigir é quase todo o Sucesso, é o que faz algo genial. Corrigir, corrigir é outro grande Poder. (...) O suicídio não é corrigível."

"Assim, pois, à medida que escrevo, indago e espero fatos, da mesma forma que o leitor."

"E ele também iria embora com tal velocidade como se ir embora veloz fosse mais ir embora."

"Desde que sou autor conto com inveja o público das batidas. Às vezes sonho que o romance teve em certas passagens tal aglomeração de leitores que obstruíam o andamento da trama com risco de que os transes e catástrofes do interior do livro aparecessem em sua dianteira, como os atropelados."

"Quem experimenta por um momento o estado de crença de não existir e depois volta ao estado de crença de existir compreenderá para sempre que todo o conteúdo da verbalização ou noção de 'não ser' é a crença de não ser. (...) não se pode crer que não se existe, sem existir. Em suma: o existir é igualmente frequentado tanto pela crença do não existir quanto pela crença do existir."

"Todo personagem existe pela metade, pois nunca foi apresentado um do qual metade ou mais o autor não tomou emprestado de pessoas 'de vida'. Por isso há em todo personagem uma incomodidade sutil e uma agitação no 'ser' de personagem, como andam pelo mundo alguns humanos que um romancista usou parcialmente para personagem e que sentem uma incomodidade no 'ser' de vida. Algo deles está em romance, fantasiado em páginas escritas, e na verdade não se pode decidir onde estão mais.
Todos os personagens estão ligados ao sonhar ser que é sua propriedade, inacessível aos viventes, único material genuíno de Arte. Ser personagem é sonhar ser real."

"(...) os dois sentimentos que definem o Viajante de qualidade são a faculdade e o desejo de esquecer e o desejo de ser esquecido. O magnífico Esquecedor, completado com esta última faculdade de indiferença a ser esquecido e ainda com a valentia e soberba de querer que a imagem dele morra na mente dos outros, morte mais temida que a pessoa talvez porque todos sentimos que não há morte pessoal. A morte que há nos esquecimentos é a que nos levou ao erro de crer na morte pessoal. Mas essa crença é fragilíssima, por isso fazemos muito mais por não ser esquecidos que por não morrer."

"O consagrado futuro literário não acredita em, nem estima, outra posteridade a não ser a noite para cada dia, não terá sentido a urgência que sofriam antes os autores de escrever logo para ter mais posteridade julgadora: com a veleidade alcançada hoje pela posteridade o artista sobrevive a ela e no dia seguinte sabe se deve ou não escrever melhor ou se já o fez tão bem que deve conter-se na perfeição de escrever. Ou se já não lhe resta nada além da carreira literária mais difícil, a de leitor. A facilidade atual de escrever faz a escassez do legível e até suprimiu a injuriosa necessidade de que haja leitores: escreve-se por fruição de arte e no máximo para conhecer a opinião da crítica."

"(...) cada um sabe com toda a profundidade duas ou três verdades complexas, mas seus contatos de vida são mil aspectos mais, de modo que deixamos quase todas as partes de nossa vida às escuras (...). E assim vivemos em constante surpresa; quase tudo no inesperado."

"A loucura em arte é uma negação realista da arte realista. (...) Eu não crio personagens loucos, eu crio leitura louca, e precisamente com o fim de convencer por arte, não por verdade."

"(...) meus personagens são todos ligeiríssimos; no instante em que deixo de escrever, eles deixam de fazer; se eu não trabalho, fica tudo parado. (...) Outra vez me procuraram ao longo do Romance porque havia deixado Dom Luciano enfiando um braço na manga do sobretudo e ele já não aguentava as cãibras dessa postura. Quem mais se queixou foi o Presidente, pois interrompi redigi-lo quando ia soprar o fósforo com que acabava de acender seu cigarro, e passou a tarde sem fumar e se queimando."

"O leitor que não lê meu romance se não o souber todo antes, é o meu leitor, esse é artista (...): só aquele não busca uma solução é o leitor artista."

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