LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Os mistérios


OS MISTÉRIOS


Todo criador de uma obra artística tem diante de si inúmeros componentes secretos por desvelar. Isso ocorre no instante decisivo de uma fotografia, que surge como num milagre (quase do mesmo modo com que surgem as palavras, para o laço do texto literário). Ocorre também na forma escondida sob a matéria-prima da escultura ou da tinta, ou nos sons ainda não modulados em música, nos movimentos que depois se transformarão em dança... Em qualquer arte existe uma zona misteriosa, não formulada racionalmente. Os pesquisadores constroem depois teorias e pensamentos em torno do ofício criador: algumas dessas questões são originais, inteligentes, científicas; outras não passam de meras curiosidades ou palpites.
Entretanto, por mais que as reflexões se tornem interessantes, insubstituível mesmo – e relevante – é sempre a arte. E há momentos em que se deve admitir que ela (não apenas como processo, mas também como produto) permanece com suas áreas inexplicáveis. Uma obra acabada não se submete a fórmulas ou expectativas, não se molda em previsibilidades. Este é, verdadeiramente, o seu ponto singular, nunca a sua fragilidade.
Costumo remoer tais ideias quando, na posição de apreciadora, caio na tentação de classificar meus sentimentos ou juízos diante de um espetáculo, uma pintura ou um filme. A tendência racionalizante é o grande vício humano, e eu tento experimentar às vezes o caminho contrário, de um olhar inocente, um contato que seja pura fruição. Ora, esse exercício tem me alertado para a necessidade de descartar explicações artísticas inclusive para as obras que tento fazer.
Sinceramente, nunca escrevi ou fotografei com o que se pode chamar de postura técnica. A paixão me domina, na hora de criar. A “frieza” profissional é posterior, no trabalho com diferentes versões, revisões, escolhas – e é óbvio que essa etapa é importantíssima, para amadurecer e consolidar o que se pretende. Entretanto, mal o processo termina, já me dedico a um novo projeto, um outro arrebatamento. A incerteza desse percurso é, talvez, o traço mais atraente e vertiginoso, aquilo de que não abro mão – e jamais abrirei.
A teoria pode ter prestígio e interesse para certas horas ou finalidades, mas somente o impulso prático inventa desafios. Quando um pensamento ou estilo estagna, isso pode parecer confortável, à primeira vista. Dá a impressão de um objetivo alcançado – mas essa é uma ilusão nociva. Torna-se estéril todo artista que adota uma fórmula ou molde para encaixar produtos autômatos, livres de dúvida e sofrimento criador. Da mesma forma, para o público, perde-se o impacto, quando se tenta substituir uma obra por sua intencionalidade. A velha pergunta sobre “o que o autor quis dizer” esconde, em nome de um simplismo tranquilizador, a mutilação de todas as riquezas que não podem ser traduzidas ou expressas a não ser daquela maneira que o autor adotou.  
Estou convencida de que, no território das reflexões, nada é mais danoso que um raciocínio fechado, cem por cento correto – assim como, em arte, nada é mais descartável que uma obra sem mistérios.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

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