LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Uma semana em Sampa


UMA SEMANA EM SAMPA

O motivo inicial era assistir à linda peça O trem das onze, uma nova adaptação que o Lucas Sancho fez, do meu livro Linha Férrea – mas é claro que achei vários pretextos para visitar São Paulo. Experimentei a cidade como nunca havia feito: participei da passeata “Fora, Feliciano”, fui a um ensaio de concerto (para ouvir a missa glagolítica de Leos Janácek, sob a regência de Osmo Vänskä), empolguei-me com os páreos do Jóquei Clube (apesar de não ter ganho qualquer aposta) e me passei por arquiteta para entrar na Vila Penteado.
Óbvio que também fui a museus – e lá estavam Monet, Rembrandt, Goya e Velázquez, quase me pondo de joelhos em pleno Masp. No Ibirapuera, depois de ser ameaçada por uma mãe-cisne (eu fotografava os seus filhotes muito de perto), entrei na Oca, onde os “tesouros do Vaticano” se exibiam: pinturas e bustos de papas, galhetas preciosíssimas e casulas bordadas a ouro, píxides e missais. Isso aconteceu justamente no dia em que o argentino Francisco fazia os jornais do mundo inteiro ficarem idênticos.
“Vou te comprar um bebezinho da Seven Boys”, disse o meu namorado, e por um segundo pensei em tráfico de crianças ou, na melhor das hipóteses, um boneco infantilóide que eu deveria aceitar, com um sorriso. Felizmente, aquele era apenas o termo paulista para indicar um bolinho de mel ou maçã. Em culinária, aliás, São Paulo é uma coisa à parte: da boa pizza com os amigos até o shimeji na Liberdade, tudo merece elogios enfáticos. A capital dos excessos deve estar acostumada – o superlativo anda nos metrôs, com as enchentes humanas pontilhando escadas; a hipérbole agiganta prédios espelhados, de lojas e serviços incalculáveis.
Mas eu estava interessada na cidade histórica, principalmente. Havia começado o itinerário pelo cemitério da Consolação, onde Álvares de Azevedo transitava (e talvez hoje ali passe, como fantasma). O mapa indicou os locais em que Mário e Oswald de Andrade, Lobato, Tarsila do Amaral e Paulo Emílio Salles Gomes foram enterrados. Este último, cineasta, foi o grande companheiro de Lygia Fagundes Telles. Em homenagem a ela, visitei também a Faculdade de Direito do Largo São Francisco – a San Fran –, onde Lygia estudou. Na praça, conforme os relatos da escritora, notei a placa comemorativa ao Álvares de Azevedo, mas com a cabeça trocada pela de outro romântico, Fagundes Varela. E, como as nuvens conspiram a favor, quando saía da Catedral, meio estonteada com as abóbadas longuíssimas, ainda encontrei a sede da OAB que traz o nome de Goffredo Telles, o primeiro marido de Lygia...
Em Sampa também vi ótimos filmes, topei com uma escultura da Louise Bourgeois, um painel dos Gêmeos, um desfile de naturiciclismo – tudo isso em cinco dias. Mas a cidade é tão intensa que, se agora eu lá voltasse, descobriria outros inesgotáveis temas de susto e aprendizado.


Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)





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