LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Flor da pele

Fortaleza me desperta, na maior parte das manhãs, com seu mormaço-aconchego. O lençol por um instante se enfuna, feito vela de jangada. Depois, vem a sensação múltipla da água, da espuma no banho um pouco salino – típico nas bandas de cá. A textura da roupa é leve: jamais o escudo dos casacos, com cada peça (gorro, luvas, meias, botas...) montada como um lego para enfrentar o frio. Em Fortaleza, um vestido e umas sandálias bastam – o calor vira liberdade. A cidade também esvoaça; a brisa é seu refresco, refrigério de quem afunda os pés na areia ou dribla as irregulares calçadas.
Numa maquete imaginária, toco as arestas dos prédios, as antenas parabólicas agudas como alfinetes, os vitrais da Sé – a rosácea que provoca um arrepio. Testo a planura da praia com meus dedos, levo grãos sob as unhas. Sinto o picotar da grama, suas miúdas espadas. Percebo a lenta correnteza do asfalto: cada buraco, uma ferida, chaga aberta no solo para a mágoa dos que passam. O mar como um grande olho azulado, e as carnaubeiras como palmas de ouriço. Roço em árvores crespas, e seus troncos fibrosos são as mãos de um querido avô. Espalmo de uma só vez as pastilhas do painel de Aldemir, no Dragão. E, de repente, o Mercado Central, com o algodão grosso das redes, o desenho das rendas, o labirinto das palhas...
Percorro Fortaleza como se palmilhasse a linha de um músculo. Transformo o tato numa experiência de concentração. Olhos fechados para entender o toque do mundo sobre a pele, para aceitar cada partícula ou pressão. A cidade e o corpo são territórios conjugados. Fortaleza é a memória volátil de gatos e aves, de livros, giz, de xícaras de café. É uma espécie de resumo sentimental de tudo o que vira substância: os lábios, a trama dos cabelos e, por fim, o corpo amado, na espessura baça da noite.
Fortaleza é minha extensão táctil, é o espaço onde um dia servirei de seiva e semente, desabrochando para conhecê-la então por baixo, em sua geografia de terra úmida – e talvez suave.

Tércia Montenegro

(esta crônica foi publicada no jornal O Povo, em 2009, mas eu a resgato aqui, em homenagem ao último dia 13, aniversário de minha cidade)

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