LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Uma tarde com Nice e Estrigas


Seguindo a orientação da amiga veterana em visitas ao casal artista, chegamos à antiga casa do Mondubim. Na última parte do trajeto, plaquinhas verdes fixadas em postes anunciam o Minimuseu Firmeza, e sem grande dificuldade acompanhamos os vestígios da via férrea.

Logo na entrada, a sensação é a de mudanças bruscas – de temperatura, primeiro: sob a sombra de muitas árvores, esquecemos que há pouco rodávamos pelo asfalto escaldante. Percebemos o ritmo delicado e lento das conversas que se tecem, a partir dos cumprimentos de Nice, sempre com uma flor no cabelo e disposta a oferecer um adorno idêntico – colhido no variado jardim – a toda mulher que apareça. Coloco também uma florzinha atrás da orelha, como se a partir daquele gesto adotasse um ritual de beleza eternamente válido. Pouco depois, surge Nilo – o Estrigas, como a arte o consagrou, ratificando um apelido dos tempos de estudante.

O Minimuseu Firmeza se abre na primeira sala, com a presença dos quadros dispostos em ordem histórica, para o estudo vivo dos principais nomes das artes plásticas cearenses. Penso na chamada síndrome de Sthendal, assim conhecida por ter afligido o autor francês em visita à Itália. A tal síndrome consiste em sentir-se desfalecer diante de inestimáveis obras de arte. Não nego que, por temperamento, sou acostumada a perder o fôlego e sentir palpitações – os típicos sintomas – quando algo me embevece. Pois ali, no Minimuseu Firmeza, o desafio foi controlar a emoção...

Além das pinturas que palmilham todas as paredes, esculturas de vários autores e texturas têm espaço garantido, em cima das mesas ou em nichos estratégicos. Num dos cantos, descubro inclusive um desenho de Rubem Braga, estrela (ou flor?) que o cronista desenhou para Nice em 1976. Duas salas contíguas completam o acervo, com obras dos próprios donos da casa e de quarenta amigos que lhes fizeram retratos, ao longo dos anos e utilizando os mais diversos estilos.

Enquanto passeiam pela coleção, Nice e Estrigas fazem comentários. Ela, cheia de pendor sentimental, lembra os detalhes com que determinadas peças foram produzidas ou a quem pertenceram anteriormente. Ele, mais técnico, aponta qualidades das telas e disserta sobre os vícios da estética atual. Nice e Estrigas certa vez se definiram como temperamentos díspares mas essencialmente complementares, feito o sol e a lua. Isso transparece a quem escuta os dois em conversa, um sempre respeitando o momento de fala do outro, sem jamais lhe cortar a palavra. Ele, com sua voz baixa, frases mais contidas e certas ironias, que pontua por um olhar arguto ou gesto de mão. Ela, sorridente e animada, complementando episódios com descrições repletas de minúcias.

Falar de como se conheceram é uma viagem no tempo, com as delícias do repertório de uma memória intacta, viva como se folheada em livro. E livros também são muitos, que Estrigas publicou dentro de um compromisso crítico, histórico ou biográfico para a homenagem de artistas como Barrica, Chico da Silva ou Raimundo Cela. Recentemente, a segunda edição de sua obra sobre o Salão de Abril foi disponibilizada ao público, e também em 2009 Gilmar de Carvalho publicou A grande arte de Estrigas, coletânea de entrevistas.

Nice narra episódios engraçados da época da SCAP (Sociedade Cearense de Artes Plásticas), que promoveu na década de 1950 o curso livre de desenho onde ela e Nilo se conheceram. Ambos relembram companheiros, muitos da área literária, membros do grupo Clã, como Eduardo Campos e Braga Montenegro, que estavam sempre antenados com as novidades na pintura e depois acompanharam de perto as edições do Salão de Abril. O sabor nostálgico vem com a ideia de um tipo de inocência, algo que para a maioria das pessoas acontece feito uma lufada durante a juventude, mas depois passa, sob o peso do aprendizado duro – são as desilusões que vêm, trazidas pelo público, pelo mercado da arte, ou mesmo pela própria humanidade.

Com Nice e Estrigas, ao contrário, tal desengano nunca ocorreu. Permanecem inocentes e lúcidos de um modo tão espontâneo que me esqueço do paradoxo entre estas duas qualidades. Na companhia deles, é fácil relaxar e perceber como a simplicidade existe – como um milagre existe, sem truque ou ilusão. O segredo? Bem, talvez parte considerável dele esteja no caráter, que é coisa intransferível. Junte-se a isso uma maneira toda especial de se recolher no abrigo e, ao mesmo tempo, participar dos eventos do mundo. Assim é o sítio no Mondubim: refúgio sem concessões, território sagrado de paz. Ali o casal vive há décadas, e dali se expande em arte e convívios, sem contaminar-se com o trivial ou a violência.

Mas a outra parte do segredo, sem dúvida, está com as crianças. Depois do café com tapioca, Nice me fala de seu grande amor pelo magistério aos pequenos. Enfatiza a admiração pelos meninos e meninas que ensina a pintar – e nisso revela a generosidade de quem não se contenta em produzir a própria obra, mas quer passar adiante o conhecimento e, mais do que ele, a paixão pela arte.

Nice educadora, ou Nice cozinheira, bordadeira, é a mesma mulher inventiva das telas. Afetuosa com pessoas, bichos ou plantas, leva-me a conhecer o baobá de suas terras como se me apresentasse a um venerável avô. Antes que eu termine a visita, faz questão de me presentear com frutas, e penso que elas servirão de lembrança concreta aos meus sentidos, alerta benfajezo, para que eu não pense que toda essa visita mágica aconteceu somente em sonho.

Na despedida, ainda ganho de presente flores do baobá, que são figuras estranhas, de caule interminável – um verdadeiro caule pescoço-de-girafa, que desponta num cume de pétalas assimétricas e aveludadas, rígidas no sépia que as secou e as tornou eternas. Agora elas vivem, com suas sementes de grandeza, adormecidas num jarro posto em minha casa. Para mim, são como o símbolo de que a força nasce lenta e se adensa silenciosa. As flores do baobá são miniaturas da planta-monumento, e não é à toa que Nice e Estrigas têm no quintal uma árvore dessa natureza.


Tércia Montenegro (crônica publicada na revista Para Mamíferos n°2)

2 comentários:

  1. Ai! lindo, o relato. Conheci o museu no ano passado, no primeiro semestre. É de muita beleza, realmente. O Estrigas é ótimo... Recebeu a gente muito bem. ^^ Não me esqueci de uma telinha, uma pintura abstrata, que tem numa salinha com vários trabalhos dele, são umas cores muito bem arranjadas. A foto tá linda!

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