LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Pelas palestras

A situação limitada de uma palestra ou conferência parece ser favorável a certos desentendimentos ou confusões especialmente toscas. Já passei por tantas circunstâncias bizarras que agora, ao receber um convite para um evento assim, vou preparada para o pior, embora sempre com a intenção de ver as “interferências” pelo lado do bom humor. Afinal, no mínimo terei mais uma constatação de que o pára-raios de loucos que carrego (invisível, sobre as costas) ainda está disposto e atuante.

A primeira vez é inesquecível, e felizmente aconteceu quando eu estava na plateia, e não no comando da palestra. Era um seminário sobre filologia, e todos os alunos de Letras estavam atentíssimos ao professor, quando de súbito ergueu-se do meio das cadeiras uma criatura colorida, esguia e oscilante, levantando um braço que serpenteava para pedir atenção. Quando o conferencista, muito educadamente, aceitou interromper o fluxo de seu raciocínio e deixou que o rapaz fizesse a pergunta, uma voz anasalada de afetação disparou: “Professor... eu gostaria de saber... o que o senhor acha da democracia holandesa?” Foi difícil para o professor não aderir aos risos que espocaram de todas as direções. Após um esforço traduzido em suspiro, ele disse ser aquele um assunto interessantíssimo, mas – tendo em vista que a palestra era sobre filologia – sua opinião ia ficar para outra hora. De imediato, decorei aquela técnica para driblar situações surreais.

Alguns episódios foram mais intensos porque eu estava na condição de protagonista, mas a todos sobrevivi – com boas risadas depois. Lembro o mais recente, com um francês beligerante que nunca tinha lido o escritor Imre Kértesz, Nobel de Literatura em 2002, cuja obra eu analisava. Até aí, nenhum problema: mas tudo se tornou dramático quando, espetado pela ousadia com que Imre falou da “felicidade nos campos de concentração”, o tal francês descontrolou-se, em cuspidelas de um agressivo sotaque. Ainda me escandaliza que a respeitabilidade possa ser esquecida – principalmente porque, sem ela, a mente se congela em “verdades”, elemento crucial das tiranias.

O francês me chocou, mas não chegou nem perto de abordagens mais criativas, como a do sujeito que, numa oficina de literatura, apegou-se a um discurso ferrenho contra a colonização que o Brasil sofreu – sem que isso tivesse o mínimo nexo com o assunto de que tratávamos. Aqui, o drible do filólogo foi retomado... como também naquela ocasião em que um membro da audiência, visivelmente doido, pediu a palavra para advertir contra a chegada de alienígenas... E haveria vários outros casos que eu citaria – mas este texto já anda “pelas tabelas”, e é preciso encerrá-lo. Resta a sabedoria de um colega de profissão, quando diz: a gente sofre, mas pelo menos se diverte!


Tércia Montenegro (texto publicado na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 14/07/2010. Pode também ser acessado em http://opovo.uol.com.br/app/o-povo/opiniao/2010/07/14/int_opiniao,2019875/pelas-palestras.shtml)

Um comentário:

  1. Adorei o texto sobre as palestras! E acho que identifico a pessoa da frase final do texto. Talvez seja um professor baixinho e esperto do DLV. Abraço, Magna

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