Um novo trabalho do grupo Bagaceira sempre surpreende. Seus espetáculos indicam buscas, experimentos inquietos à procura de novas linguagens, novas possibilidades teatrais. Em dez anos de carreira, seus artistas criaram um estilo inconfundível, enraizado por todos os espetáculos em aspectos de luz, figurino, texto ou atuação – mas isso jamais significou conformismo. Amadurecer um estilo não implica congelar-se em fórmulas, esquemas fáceis que dão certo para agradar ao público. Ao contrário, os trabalhos do Bagaceira sempre arriscaram, estiveram na linha fronteiriça das sensações complexas – seja com humor ou melancolia, erotismo ou efeito lúdico.
Dessa vez, com “Incerto”, a estranheza nasce com riso e amargura. Durante todo o espetáculo, existe a impressão paradoxal de que, pela metalinguagem, chega-se à vida em estado bruto. As reflexões sobre o teatro, seu valor ou necessidade para o próprio artista que o faz (e que às vezes o rejeita, saturado ou doído de decepções) levam a um entranhado de cenas extraídas do cotidiano de ensaios. A peça surgiu como urgência do grupo teatral, num momento em que dúvidas e conflitos interferiam de maneira inegável, e o prazer e os limites do ofício estavam em pauta.
Elegendo como principal argumento da peça a incerteza, percebe-se como tudo o que não parece inteiro ou totalmente construído incomoda. Incomodam as perguntas e inconstâncias. Questionar a verdade cansa e desgasta; destrói as relações, às vezes. Mas admitir essa necessidade é um ato corajoso, talvez o único ato de uma coragem especificamente humana. Todos os outros atos de bravura são movidos pelos básicos instintos de qualquer animal, menos esse: o impulso de indagar, expor-se insatisfeito, incompleto, dar a cara a tapa, ver-se pelos olhos dos outros e, assim, distanciar-se de si e encontrar, senão a identidade, pelo menos o caminho.
O caminho que se trilha, com recuos e bifurcações, poeira e neblina é o trajeto primário que o Bagaceira ousa mostrar, como quem abre as vísceras. Se é aflitivo olhar por dentro, a dor vem do fato de que todos nos identificamos com algum tipo de crise – mas poucos sabemos, desse ponto, extrair a criação. São muito raros os que fazem do processo o meio em si, com o grande objetivo de objetivar-se: olhar-se como personagem, para além do espelho, numa dimensão universal que, se por um lado se agiganta, nem por isso esconde as fraquezas e fissuras. Declarar as perturbações na superfície da arte: é esse o grande gesto, a escolha do espetáculo “Incerto”. Porque as angústias sempre foram matriz e motor dos inventos estéticos (e não só deles, mas de qualquer invento da humanidade) – porém restava admitir isso sem artifícios, escancarando os bastidores como quem alarga a alma.
Quando, magicamente, despe-se de alegorias, esse teatro se torna emblemático – porque, por um momento, a plateia esquece que há um texto (que em algumas passagens até se compõe com rimas, mostrando como foi construído e bem pensado). O público se engana ao considerar que as cenas vêm ao acaso, espontâneas e hesitantes, como se a peça ainda estivesse por começar – aquela peça que estamos acostumados a ver pronta, redonda e bem marcada.
“Incerto” celebra a truncagem, os fragmentos dinâmicos das relações entre as pessoas, os picos e abismos da geografia interna de cada um. Confessa o estar sempre “no quase”, e pela frustração admitida alcança a completude – não no sentido de acomodar-se num espaço fechado, mas justamente pelo contrário: abrindo os olhos para a dispersão, chega-se a um foco; embora depois se mude para outro, e ainda outro, ou outro... O autoconhecimento é teraupêutico porque primeiro desestabiliza, para que enfim se encontre um eixo, apesar de fluido.
A ilusão de que se faz vida, e não teatro, é a grande fisgada nesse trabalho do Bagaceira, sua solução que, por debaixo de toda a instabilidade exposta, vem muito bem consolidada. Afinal, as fronteiras entre ofício e paixão, carreira e prazer são mesmo assim: escorregadias ou titubeantes, plenas de uma incerteza tipicamente humana.
Tércia Montenegro – 03/07/2010
Acabei de ver a peça. Achei muito interessante o quanto o espectador - ao menos eu - vai se envolvendo com as incertezas e conflitos das personagens exatamente por acreditar na tremenda verossimilhança dos diálogos. A maioria das pessoas com quem falei disse ter sentido o tempo passar rápido ao longo do espetáculo. Um bom sinal. Achei o texto do Rafael muito legal e a interpretação da Tatiana excelente. Adorei tua crítica/leitura da peça, Tércia!
ResponderExcluirAbração e beijão,
Anna