LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A arte e o tempo

Um documentário que recentemente vi, sobre André Malraux, deixou em mim uma afirmação ressoando: a de que a arte é capaz de criar novos tempos. Tal ideia a princípio parece banal, utópica ou otimista, talvez. Mas o sentido não era o de um novo tempo no aspecto promissor das ideologias felizes. Também não dizia respeito à eternidade que os artistas buscam: aquele impulso básico de sobreviver para além de si, que uns direcionam ao projeto de deixar filhos, propagando o código genético, e outros formulam de maneira mais simbólica, lançando ao mundo obras de pretensão estética.

Não, a proposta de Malraux não trazia esses chavões que o homem desde sempre criou, para tentar inutilmente vencer a roda-viva dos anos. Sua afirmação era a de que a arte cria tempos paralelos, ou seja, diversas possibilidades para se viver, fora da rotina, da realidade massificante ou da época comum de todas as pessoas. Assim, o artista (e o espectador também), diante da obra, experimentaria uma vivência extra, composta de emoções e conhecimentos intraduzíveis dentro do tempo usual. A arte seria capaz de conduzir a aprendizados e intuições que de outra maneira nunca existiriam.

Quem jamais se sentiu mergulhado numa dimensão diferente ao contemplar, por exemplo, uma pintura de um gênio como Van Gogh ou Monet, não saberá do que estou falando. Mas, para os que têm a disposição de perder-se dentro de um museu, a afirmativa de Malraux traz uma síntese perfeita. É justamente um outro tempo que se inaugura, pela arte. Senão, como explicar que aquele momento dedicado à observação dos detalhes de um Rodin tenha parecido dois ou cinco minutos, embora o relógio assinale meia hora? A arte exige paciência, e não se pode ser artista ou público movido pela pressa – como um gourmet não pode apreciar um bom prato se tem de comer num fast food, a toque de caixa.

Essas horas que parecem perdidas, na lentidão de um passeio pelas salas de museus, ou na absorção de um espetáculo, ou na calma leitura de um poema, são o verdadeiro tempo ganho, que a arte instaura. O único tempo – eu ousaria dizer – proveitoso, de fato. É a nossa ocasião para exercitar a sensibilidade, ultrapassando o raciocínio: podemos sair da individualidade e provar percepções alheias, visões singulares.

Talvez algum leitor ache que minhas impressões neste campo alcançam um teor excessivamente metafísico ou espiritual. Pois é assim mesmo que percebo a arte: em qualquer de suas manifestações, ela parece divina, por seu duplo gesto de criar. Para além de sua existência empírica, carrega um potencial etéreo – e por esta saída abre um tempo próprio, que supera a superfície das coisas vistas e inventa infinitos mistérios.


(crônica publicada em 25/08/2010, na coluna Opinião, do jornal O Povo. Disponível também em http://opovo.uol.com.br/app/opovo/opiniao/2010/08/25/int_opiniao,2034489/a-arte-e-o-tempo.shtml)

Um comentário:

  1. A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar,parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos
    outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

    trecho do artigo "notas sobre experiência e o saber de experiência", de jorge larossa bondía.
    lembrei bastante dele enquanto lia o seu texto.

    beijão e abração,
    anna

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