LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Os blogs e os diários

Sempre tive diários, embora nunca os preencha diariamente. Em vez dos “modelos fixos”, com data e fase da lua, uso cadernos pautados. Assim, quando quero escrever, não fico aprisionada pelo espaço imutável de uma folha para cada dia: garanto total liberdade ao assunto em questão. Protegido pela atmosfera de intimidade, o texto corre solto, insistindo nuns pontos e ignorando outros, torcendo os fatos até... Tudo aqui é permitido!

Em qualquer outra escrita, feita para ser publicada ou divulgada de algum modo, existe a fiscalização, guiada pela expectativa do leitor. Num diário, nascido para ser guardado a chave ou escondido sob o colchão, isso não acontece. Pode-se exercer a sinceridade plena, a insanidade criativa ou a opinião inflexível. Essa falta de controle é absurdamente confortável: cria a ocasião em que o texto se torna puro ato, sem consequências. Se não há leitor, não há reações nem reprimendas. Não há urgência de desfazer enganos ou preservar conceitos. Nada existe depois da palavra, nada que a conserte ou ultrapasse. A escrita do diário é imperiosa e exclusiva; nasce ali e ali se acaba.

Óbvio que o mercado editorial ocasionalmente se encarrega de publicar diários – mas hoje não estou me referindo a esse caso. Meu tema é o diário íntimo, tão indevassável quanto o próprio pensamento, em contraste com o blog.

Quando esse gênero digital surgiu, houve tentativas de explicá-lo através de comparações com um diário. Um blog também podia ser escrito um pouco a cada dia, e podia tratar de assuntos privados, memórias e desabafos. Mas logo ficou clara a diferença entre os dois tipos de texto: um blog não é um diário virtualizado. A presença de um público leitor, com capacidade para se irradiar pelo mundo inteiro, interfere em muitas características. O gesto catártico e secreto desapareceu; surgem as velhas preocupações com autoimagem. O autor de um blog fatalmente pensa: “O que estou postando interessa? Vai agradar?” Ele sabe que existe, por trás de algum computador do mundo, um leitor que recebe aquilo – e, por mais que isso seja estimulante (porque toda plateia o é), pode resultar empobrecedor.

Quem escreve somente para ser lido acaba por fazer de si próprio um juízo muito equivocado. Na autenticidade, no estado bruto que não precisa de resposta, ninguém melhora ideias, busca completa coerência ou boas emoções. É por isso que um diário favorece mais o autoconhecimento do que um blog: olha-se apenas para si, o outro não interessa.

Nestes tempos de falta de privacidade, um lugar de solidão vira oásis. Um blog pode ser útil e estabelecer contatos, mas jamais terá a força de um diário feito ao modo arcaico. É sobre estes aspectos que eu converso logo mais às 19h30, em palestra na livraria Cultura. Quer debater a respeito? Compareça!

(Publicado hoje no Vida & Arte. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/vida-e-arte/2010/11/03/noticiavidaeartejornal,2059348/os-blogs-e-os-diarios.shtml)

4 comentários:

  1. Tércia, vc escreve muito, eu te admiro demais...rs

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  2. Diários são como amigos íntimos..cúmplices... companheiros.

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  3. Nunca tinha pensado nessa distinção entre blog e diário...
    E,como de costume,adorei sua postagem...pena que comparecer à palestra não foi possível :(

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  4. crônica maravilhosa, eu vou utilizá-la para o estudo desses dois gêneros!!!

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