Existem muitas formas de expressar ódio ou rancor, desde o simples berro solitário até o ataque físico ou verbal. Ora, a escrita também vira suporte para as emoções do violento. É possível aliviar-se de maus sentimentos pelo desabafo gráfico, pondo em letra verdades cruas ou infâmias consoladoras.
Foi nessa catarse que pensei, quando semanas atrás encontrei um muro transformado pelo ódio escrito. Ali estavam ofensas contra determinado indivíduo, citado nominalmente. Os desenhos e frases, cheios da escatologia mais criativa que se possa imaginar, adotavam o formato de um recado ou bilhete, trazendo uma espécie de assinatura sugestiva. O pseudônimo usado era “O teu pesadelo”.
Para mim, mergulhada num tráfego em paralisia, a experiência foi singular. A cada metro que o carro avançava, eu tinha um acréscimo na leitura daquela correspondência pública, pois o muro era longo e estava inteiramente preenchido com letras crispadas. Em determinado trecho, outra personagem – agora citada por nome feminino – também passava a ser xingada, e concluí que aquela era uma vingança amorosa.
O tal sujeito certamente tinha abandonado uma mulher para ficar com outra, e a rejeitada vingava-se com os desaforos na parede. Mas ali não se escrevera com tinta, que forma palavras líquidas e fáceis. O ódio da mulher foi cavado, no feitio de uma ameaça rupestre, de gesto tão violento como primitivo. Tanta má energia acumulada me deu um nervosismo, mas logo sosseguei, pensando no cão que ladra e não morde. Provavelmente o traidor sofreria apenas a humilhação pública; não seria morto e esquartejado, junto com sua amante – embora “o pesadelo” a certa altura prometesse isso.
Claro que não dá para se sentir seguro diante de sugestões de vingança, e quem se arrebata a ponto de expor o ódio com extremos deve esperar as devidas represálias. No caso do tal muro, fica óbvio que o ofendido pode ir à justiça, contra difamação ou coisa do tipo. Mas não deixo de pensar que a mulher traída foi a mais prejudicada: foi quem mais se envenenou, na febre do descontrole.
Imagino sua figura franzina, tentando compensar fragilidades na escrita ríspida e larga. Calculo o tempo que gastou para preencher toda a extensão do muro, no vandalismo certamente ocorrido de madrugada. De lanterna numa das mãos, canivete na outra, aplicou-se nos palavrões e desenhos supostamente obscenos, mas com um traço tão infantil. Devia chorar durante a tarefa, e mesmo depois não conseguiu dormir, à espera – de quê? De uma reação do homem. Queria, no íntimo, uma explosão parecida com a dela, algo que continuasse inflamando seus motivos para odiar – embora, no fundo, sua alma implorasse por trégua.
Se o antigo companheiro for esperto, adotará como revanche o desprezo. Ele garante um cozimento demorado das emoções ruins. O desprezado passa anos remoendo episódios mal resolvidos, enquanto a outra pessoa já superou tudo, ou tudo esqueceu. Dizem os antigos, inclusive, que esse tipo de violência é o mais cruel. Sobre isso, eu não opino, mas creio que –sendo tão silencioso e discreto – o desprezo é o único modo de praticar violência com elegância.
Tércia Montenegro (artigo publicado na coluna Opinião do jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/11/10/noticiaopiniaojornal,2062282/violencia-no-muro.shtml)
Sempre me surpreendo positivamente com o que vc escreve...
ResponderExcluirApesar do pouco tempo...já me considero uma fã sua.
Parabéns,beijo. :D
Tercinha, é sempre um prazer ler o que você escreve. Saudades!
ResponderExcluirE o perdão ao invés do desprezo, pode ser algo a ser considerado? O desprezo não é outra forma de violência?
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