O
DESNORTEIO
Talvez não haja grande
diferença entre a sensação trazida por uma catástrofe natural e outra, criada
voluntariamente por alguém. Um furacão furioso também pode se instalar nas
fissuras humanas: tempestades nascem dentro de casas, vendavais que arrebatam
ânimos, sopram palavras, cavam abismos. De repente, você está num território
que se transformou: o terreno sólido virou desastre, cheio de ruínas. Os
objetos parecem cacos, resquícios que se penduram nas paredes ou ficam
esfriando nas gavetas, como fotografias que não se quer mais ver. Cenas e
rostos reverberam, criando fantasmas – ou serão vapores de lembrança? E, antes
disso, houve presságios, brigas inexplicáveis de gatos mansos, houve olhares
furtivos e ausentes, a falta de gestos que primeiro não eram notados porque já
existiam, espontâneos. Assim a natureza de repente muda: o céu tinha uma cor
esquisita, disseram, antes do tsunami. Ainda era um céu, acima de nossas
cabeças; nada extremo aconteceu como anúncio; não foi preciso que se revirasse
a geografia nem que as nuvens escrevessem alfabetos pelo ar. Tudo sutilíssimo;
apenas uma cor diferente, um tipo de vento que jamais arrepiou daquela maneira.
E, minutos depois, a onda gigante arrastando sem trégua, tão violenta e
poderosa quanto uma mensagem definitiva.
E por falar em
mensagem, eu procuro um livro-bússola, impossível. O poeta Vinícius de Moraes
não deixou o contraponto, não escreveu Para
perder um grande amor. Mário Faustino tampouco descobriu a solução em
oráculos, a verdadeira “conjunção de agouros” que tanto pode atormentar, no
poema “O homem e sua hora”. Fernando Pessoa – oh, meu Deus! – nem ele, com
todos os seus geniais desdobramentos, é suficiente para lidar com
desassossegos. Tem razão meu amigo Rafael Martins quando, numa de suas peças
teatrais, diz que não há um procedimento para a vida. Como não há maneira de se
salvar de calamidades – acrescento. Alguns elencam prevenções, treinamentos que
dão uma (falsa) segurança; há os que constroem trincheiras, abrigos subterrâneos,
pintam rotas de fuga e aprendem a se manter deitados em caso de relâmpago ou
terremoto. Mas nada disso garante. A natureza, quando chega a seu limite, é
implacável, embora aja somente como justiceira: sua violência é sempre uma
resposta.
Quando se cria
intencionalmente um desnorteio, a princípio tudo pode parecer diferente; pelo
menos, a causa do desastre foi
egoísta: alguém escolheu, hesitou no seu milésimo de ponderação – e depois
decidiu. A sua decisão estourou uma represa, fez caírem aviões, despedaçou
estilhaços de bomba, deixou um cogumelo de fumaça parada sobre o mesmo local,
durante muito, muito tempo. Estava lá um homem que apertou o gatilho, o
detonador – mas ele não importa. A única coisa que permanece é o choque, o
inesperado desequilíbrio diante da catástrofe. Pelo mundo inteiro, creio que a
sensação deve ser idêntica.
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)
E o pior é que, com pouca variação, somos dados a catástrofes...
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