O
PREDESTINADO
Alguns livros, como
certas pessoas, já nascem predestinados. Quando a Fundação Demócrito Rocha me
convidou para reunir cinquenta crônicas dessas que venho divulgando há dois
anos, aqui no espaço Opinião, pensei logo no título Os Espantos. A própria seleção dos textos me conduziu a esse nome,
pois a maioria das crônicas trata de vidas insólitas, obras de arte (que quase
sempre são espantosas) e situações estranhas ou engraçadas. Mal sabia eu que o
livro, assim batizado, continuaria me espantando, embora, como sua autora, eu já
devesse ter me acostumado a todas as suas características e possibilidades. O
susto, porém, continuou e talvez ainda persista por muito tempo, conforme fico
sabendo do destino que essa obra vai ganhando.
A
peripécia começou no caminhão que transportava os exemplares para o lançamento
em Fortaleza, a ocorrer durante a Bienal Internacional do Livro do Ceará. Em
certa altura da viagem, em Minas Gerais, o motorista perdeu o controle e o
veículo tombou, largando a carga pela estrada. Rapidamente, apareceram inúmeras
pessoas para se apoderar dos pacotes – e essa cena dos salteadores correndo com
caixas literárias é uma das coisas que eu jamais conseguiria, sozinha,
imaginar. Mas a vida supera a ficção, e o motorista, mesmo com um dos pulsos
quebrado, teve o espírito camoniano de se agarrar com um dos pacotes, para
salvá-lo. Foi essa caixa, sobrevivente do saque, que garantiu a quantidade de
exemplares para que o meu lançamento acontecesse, na quarta-feira passada.
Houve
rumores de que o acidente teria sido provocado por uma barricada preparada por
universitários, que, revoltados com os altos preços dos livros que têm de
comprar, decidiram saquear alguns. Ao abrirem os pacotes e depararem com o
título Os Espantos, imagino o que não
lhes passou pela cabeça...
Por
outro lado, ouvi versões garantindo que o assalto foi planejado por uma única
pessoa, um empresário que pretendia montar certa livraria monotemática em Ubá.
Os livros, após o roubo, seguiram transportados em lombo de burrinho pedrês até
um depósito clandestino, e em breve devem ser levados para a tal livraria. Enquanto
isso, alguns exemplares já começaram a circular informalmente e, de pessoa em
pessoa, vão ganhando mundo, viajando. Um dos livros até foi visto em Congonhas,
na mão do profeta Habacuque, de Aleijadinho.
A
editora providenciou uma nova impressão para substituir as unidades perdidas –
mas, para mim, os exemplares salvos pelo motorista são especiais. Com pequenos
amassados e pingos de sangue, eles trazem o sinal da esperança. Afinal, se a
posse de livros ainda provoca luta, nem tudo está perdido para a literatura!
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no respectivo site)
Uau! Esse, definitivamente, foi um encontro com o Real, ainda mais tendo o livro o título "Os espantos". Onde posso comprar meu exemplar? Será que ainda existe algum com pingos de sangue? Eu quero a marca da luta!
ResponderExcluirK.
Muito bom! eu tive a sorte de escutar essa história pela própria autora em sala, e o que ESPANTA é que o enredo real do livro já dá origem a outra história tão espantosa quando uma ficção. Tércia parabéns, sucesso sempre!
ResponderExcluirÉ simplesmente "esperançoso" por um lado, saber que se saqueia caminhos tombados com Livros. Há uma esperança no final da estrada. Sua crônica é um Espanto de doçura e me levou a pensar que ainda podemos continuar sonhando em lançar livros em nosso país, pois existe até saqueadores e movimentos em prol desse belo produto cultural. Aliás fonte onde se bebe a cultura. Parabéns Tércia!
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