CRÔNICA
DAS CAMINHADAS
Há algumas semanas convenci-me
de que realmente é um absurdo que eu more perto de uma praça e jamais a use
para atividades físicas. Fazer caminhadas, além disso, pode ser um exercício
sociológico, com tantos tipos que se encontram no percurso. Talvez seja até
mesmo uma aula de arquitetura e ficcionalidade, se nos concentrarmos em certas
casas lindas que ainda existem nessas ruas secundárias, enquanto imaginamos
quem pode habitá-las, e com que manias, gostos e aparências.
Mas por hoje ficarei
restrita aos caminhantes – figuras que vencem metros e metros em círculos, tão
obstinadas quanto hamsters dentro de uma roda. Muita gente vai à praça com
cachorrinhos farfalhantes. De vez em quando, alguém exagera, como a senhora que
vi puxando uma verdadeira matilha em miniatura: quatro pequineses numa mão e,
na outra, dois bassets, além de vários poodles, creio. Todos seguiam
comportados no passeio – mas me deu uma angústia de pensar no instante em que
um latisse, e a guia de todos passasse a se enroscar, como labirintos de
elástico...
Alguns caminham em
família, e as crianças levam carrinhos, skates ou velocípedes; já tentaram
montar um pula-pula, mas não deu certo, por causa do vento. E por falar em
vento, nesta época do ano as árvores sorteiam os premiados com frutos que
descrevem trajetórias inusitadas. Não se consegue escapar, a não ser pela
sorte; pode-se aderir ao cooper como estratégia, mas os
projéteis de manga atingem igualmente velhinhos trêmulos ou atletas.
Existem diversas outras
ameaças rondando os caminhantes; afinal, quando se está na rua, tudo pode
acontecer. A maioria das pessoas, entretanto, consegue se exercitar de forma
contínua, mantendo o ritmo como um mecanismo condenado à repetição. Assim,
podem surgir amigos (o caminhante acenará com a mão, mas não vai parar para uma
conversinha), paqueras (e quase sempre deixar de ouvir certas cantadas
é melhor para a saúde – mental, inclusive) ou assaltantes (jamais rápidos o
suficiente para os maratonistas). O exercício prossegue.
Nesta praça, vejo
sempre as mesmas pessoas. Há um senhor rápido, que mentalmente chamo de
“maestro”, por seus cabelos brancos esvoaçantes. Dondocas galopam com tênis
importados, balançando seus brincos de argola. Duas garotas, a cada semana,
parecem terminar novos namoros aos gritos, pelo celular, enquanto resfolegam no
décimo quilômetro. Um grupo de freiras se exercita com tai chi chuan: a
distância, parecem garças muito leves, com hábitos e véus brancos a esvoaçarem em
desequilíbrio.
Nos últimos dias, acreditei
encontrar novos visitantes – alguns, retardatários, adotavam a moda de correr usando
gorros natalinos ou barbas falsas. Sei que a maioria, porém, não se tornará
habitual do parque. Estamos em época de virada, com motivações utópicas ou
decisões fulminantes que (como quase todas as promessas) costumam ser
abandonadas após uma curtíssima experiência.
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)
Engraçado ... No mesmo dia que saiu a crõnica lá estava eu dando voltas (devidamente acompanhado) em uma pracinha, mas diferentemente da autora, não corro o risco de atingido por uma fruta desgovernada.
ResponderExcluirObs: crônica muito escrita e divertida.
hahahaha muito bom! lembrando aqui de quando passamos pela pracinha no dia 31 e, perto da hora da virada, ainda havia pessoas caminhando como se nada estivesse acontecendo... a imagem das freiras é excelente!
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