LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Crônica das caminhadas


CRÔNICA DAS CAMINHADAS

Há algumas semanas convenci-me de que realmente é um absurdo que eu more perto de uma praça e jamais a use para atividades físicas. Fazer caminhadas, além disso, pode ser um exercício sociológico, com tantos tipos que se encontram no percurso. Talvez seja até mesmo uma aula de arquitetura e ficcionalidade, se nos concentrarmos em certas casas lindas que ainda existem nessas ruas secundárias, enquanto imaginamos quem pode habitá-las, e com que manias, gostos e aparências.
Mas por hoje ficarei restrita aos caminhantes – figuras que vencem metros e metros em círculos, tão obstinadas quanto hamsters dentro de uma roda. Muita gente vai à praça com cachorrinhos farfalhantes. De vez em quando, alguém exagera, como a senhora que vi puxando uma verdadeira matilha em miniatura: quatro pequineses numa mão e, na outra, dois bassets, além de vários poodles, creio. Todos seguiam comportados no passeio – mas me deu uma angústia de pensar no instante em que um latisse, e a guia de todos passasse a se enroscar, como labirintos de elástico...
Alguns caminham em família, e as crianças levam carrinhos, skates ou velocípedes; já tentaram montar um pula-pula, mas não deu certo, por causa do vento. E por falar em vento, nesta época do ano as árvores sorteiam os premiados com frutos que descrevem trajetórias inusitadas. Não se consegue escapar, a não ser pela sorte; pode-se aderir ao cooper como estratégia, mas os projéteis de manga atingem igualmente velhinhos trêmulos ou atletas.
Existem diversas outras ameaças rondando os caminhantes; afinal, quando se está na rua, tudo pode acontecer. A maioria das pessoas, entretanto, consegue se exercitar de forma contínua, mantendo o ritmo como um mecanismo condenado à repetição. Assim, podem surgir amigos (o caminhante acenará com a mão, mas não vai parar para uma conversinha), paqueras (e quase sempre deixar de ouvir certas cantadas é melhor para a saúde – mental, inclusive) ou assaltantes (jamais rápidos o suficiente para os maratonistas). O exercício prossegue.
Nesta praça, vejo sempre as mesmas pessoas. Há um senhor rápido, que mentalmente chamo de “maestro”, por seus cabelos brancos esvoaçantes. Dondocas galopam com tênis importados, balançando seus brincos de argola. Duas garotas, a cada semana, parecem terminar novos namoros aos gritos, pelo celular, enquanto resfolegam no décimo quilômetro. Um grupo de freiras se exercita com tai chi chuan: a distância, parecem garças muito leves, com hábitos e véus brancos a esvoaçarem em desequilíbrio.
Nos últimos dias, acreditei encontrar novos visitantes – alguns, retardatários, adotavam a moda de correr usando gorros natalinos ou barbas falsas. Sei que a maioria, porém, não se tornará habitual do parque. Estamos em época de virada, com motivações utópicas ou decisões fulminantes que (como quase todas as promessas) costumam ser abandonadas após uma curtíssima experiência.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)

2 comentários:

  1. Engraçado ... No mesmo dia que saiu a crõnica lá estava eu dando voltas (devidamente acompanhado) em uma pracinha, mas diferentemente da autora, não corro o risco de atingido por uma fruta desgovernada.

    Obs: crônica muito escrita e divertida.

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  2. hahahaha muito bom! lembrando aqui de quando passamos pela pracinha no dia 31 e, perto da hora da virada, ainda havia pessoas caminhando como se nada estivesse acontecendo... a imagem das freiras é excelente!

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