O
COMÉRCIO DO MEDO
Aviso a quem quiser
saber que não sou ingênua e leio jornais – portanto, conheço a situação de
violência que persegue nossa cidade e, por que não dizer, o mundo inteiro.
Sobram casos de agressão, para quem gosta de notícias sangrentas. Mas o
problema não está no indivíduo com curiosidade mórbida, que se compraz em
chafurdar na angústia (embora os psiquiatras talvez digam que aí existe, sim,
um problema); o grande transtorno é a comercialização do medo, expressão que
já se vê no roteiro do filme Do mundo nada se leva – um clássico,
sábio como todos os clássicos.
O comércio do medo revelou-se para mim de
forma nítida no dia em que fui comprar um carro. A moça da concessionária não
ficou satisfeita quando apontei um veículo básico. Insistiu na necessidade de
acessórios como rastreadores, travas elétricas, fumê resistente a impacto (e mostrou
um vídeo com um suposto assaltante fracassando em atirar contra um carro bem
preparado). Respondi que nunca tivera essas coisas e não me faziam
falta, nada jamais tinha me acontecido. Então a moça pôs as mãos na cabeça:
“Porque a senhora é uma abençoada de Deus! Mas e se isso muda? Sem um alarme e
um bloqueador, o que a senhora vai fazer?”
Preferi pensar – e
nisso não me frustrei – que continuaria sob as bênçãos divinas. Não comprei
qualquer dispositivo para pânico em automóveis, e da mesma forma não aceito
ofertas de seguradoras que vêm me prevenir (através de funcionários aflitos e
supostamente preocupados com minha integridade) a respeito de incêndios em
prédios, desastres súbitos que me arruínem a moradia ou saúde, imagine! sem um benefício
financeiro para compensar os destroços.
Acho que sou crítica
demais e até intolerante com esses profissionais, mas se existe uma coisa que
não suporto é a manipulação pelo medo. Que o comércio seduza por artifícios
enganosos, promessas de felicidade e sucesso, vá lá; a gente não se ilude, mas
entende que é parte do jogo. Afinal, desde épocas remotas um vendedor exagera
ou mente sobre a qualidade de um produto, para conseguir sobreviver no mercado.
O que fazemos, porém, nesta época em que cercas elétricas e câmeras “de
segurança” vendem muito mais do que livros ou chocolate? Eu lamento pelos
escravos do receio, que dizem amém a todos os artifícios – grades, cadeados, fechaduras
– que vêm limitar sua leveza de viver. Se o medo é uma reação inevitável diante
de ameaças, a forma de controlá-lo não está em qualquer dispositivo ou máquina.
Lembro que, na primeira
vez em que vi o mar (eu tinha dois, três anos?), soltei um grito de terror, apavorada
com aquela coisa infinita e ondulante – o tipo de grito que depois as meninas
só têm permissão para dar diante de baratas, ou dentro de uma história hitchcockiana.
Então o adulto que estava comigo (meu pai? minha mãe?) disse, para me acalmar,
que o mar não viria atrás de mim: “E você não precisa entrar nele.” Foram as
palavras mágicas, que eu agora resgato. Ninguém precisa entrar no medo.
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)
Adorei.
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