LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

As profissões provisórias

          Acontece de eu encontrar um ex-aluno e receber aquele cumprimento alegre, com a pergunta clássica: “Ainda está ensinando?” Tenho vontade de responder algo disparatado – pois será possível que as pessoas encarem o magistério como se fosse uma espécie de intervalo ou preparação para outra carreira? Claro que esse tipo de indagação revela um conceito sobre os professores. Afinal, ninguém pergunta a um médico ou engenheiro se eles prosseguem com seu ofício... Entretanto, para além do problema cultural, de uma maneira remota a curiosidade desse aluno não é de todo injusta. Muita gente muda de profissão drasticamente, sem apego nenhum à rotina ou às características do emprego. São os aventureiros profissionais, que descartam ocupações num rodízio frenético, nunca se ajustando ao serviço – e os motivos para isso são vários.
          Conheci certa vez um padre que perdeu a fé. Ao largar a batina e as ocupações espirituais, ele resolveu se dedicar a uma tarefa que fosse radicalmente oposta, associada ao que existe de mais efêmero e carnal. Após os estudos necessários, ele se tornou um obcecado pela morte física e hoje é um dos mais prolíficos legistas de uma cidade no Maranhão.
          Algumas pessoas são ousadas – e o que seria do mundo se não fossem elas? Engajam-se em atividades bizarras, ganhando a vida com elementos únicos. Assim acontece com o Sr. Fernandes, português que trabalha como segurança no Museu das Palmilhas Ortopédicas. Eu o conheci numa viagem a Lisboa e me impressionei com sua força de vontade, ali sozinho em longas tardes de monotonia. Um caso parecido é P.W.V. (que me escreve na esperança de que eu não revele sua identidade), bolsista dedicado a reconstituir os dias de Heliogábalo, o mais pervertido dos imperadores da antiga Roma. Sua rotina é igualmente solitária, com a diferença de que ele trabalha num quinto andar com vista para o engarrafamento da av. Dom Manuel.
           Lembro ainda o Dr. K. Kalil, que pesquisa o idioma da tribo dos tártaros negros da Sibéria e para isso suporta um clima de quarenta graus negativos. Penso na jovem Sulfina, olfatista, que cheira e testa produtos pelo odor – algo horrível, no caso de detergentes, e enjoativo, no caso de perfumes. E também não poderia esquecer o revolucionário Zé do Mato, um sujeito que trabalha prensando estrume para fazer tijolos ecológicos. Todas essas figuras vivem dedicadas a profissões volúveis – mas não é o que importa. Mais vale a criatividade por se reinventar a cada experiência, e é por isso que às vezes eu me ponho a imaginar. Se não estivesse envolvida com o magistério, a escrita e a fotografia, o que gostaria de fazer? Poderia ser adestradora de golfinhos, especialista onírica, arqueóloga, jornalista ou atriz – ou talvez escolhesse todas as opções em conjunto. Uma profissão não basta para que eu me sinta múltipla...

Tércia Montenegro (crônica publicada no jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/02/15/noticiasjornalopiniao,2784299/as-profissoes-provisorias.shtml )

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