LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O riso de Isak (II)

Nas Sete narrativas góticas de Karen Blixen, posso dizer que encontrei o tal humor que não achava antes (e que justificou minha postagem dias atrás). Há muitos instantes claramente irônicos nestes contos - e a comicidade atinge sobretudo temas religiosos. Como um artista não deve satisfação aos pensamentos convencionais, merece aplauso nossa Isak Dinesen, que cada vez me encanta mais, a ponto de eu já ter encomendado sua biografia pelo correio.
Fiquem com um dos trechos divertidos, para alegrar um pouco esta tarde:
"Em Pisa", disse ele, "há muitos anos, eu estava presente quando o nosso glorioso poeta Monti sacou sua pistola e disparou contra o monsignor Talbot. Isto aconteceu em uma ceia com apenas três convivas, exatamente como esta. E tudo começou com uma discussão sobre a danação eterna.
"Na época, Monti acabara de compor seu Don Giovanni e, como desde algum tempo vivia imerso em profunda melancolia, não queria beber nem conversar. Monsignor Talbot perguntou-lhe o que havia acontecido, curioso para saber o motivo daquela infelicidade após um sucesso tão estrondoso. Monti indagou ao monsenhor se não lhe parecia justificável que um homem sentisse o espírito acabrunhado pelo fato de ter criado um ser humano que acabaria ardendo no inferno por toda a eternidade. Talbot sorriu e declarou que isto só poderia ocorrer com pessoas de verdade. Então o poeta se exaltou e perguntou-lhe se o seu Don Giovanni não era de verdade, e o monsignore, recostando-se na cadeira, e ainda sorrindo para o outro por este levar aquilo tão a sério, explicou que queria dizer seres que de fato haviam sido de carne e osso. 'Carne e osso!', exaltou-se o poeta. - 'Como o senhor pode duvidar de que ele era de carne e osso quando só na Espanha encontram-se mil e três damas capazes de atestar tal coisa?' O monsignor Talbot perguntou-lhe então se ele de fato considerava a si mesmo um criador tal como Deus.
"'Deus!', berrou Monti, 'Deus! E o senhor não sabe que, na verdade, tudo o que Deus quer é justamente criar o meu Don Giovanni, e o Ulisses de Homero, e o cavaleiro de Cervantes? É muito provável que estas sejam as únicas criaturas para as quais foram feitos o céu e o inferno, pois o senhor não imagina que um Deus Todo-Poderoso estaria disposto a conviver para todo o sempre, nesse mundo sem fim, com a minha sogra e o imperador da Áustria?" (pp.204-5)

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