LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

As reproduções

                                                         

         Sempre achei estranho o fato de que em nossa cidade (onde vivem ótimos artistas plásticos) algumas pessoas ainda comprem reproduções de telas famosas, em vez de adquirir uma obra exclusiva, com estilo próprio. Claro que às vezes, na impossibilidade de pagar por um Velásquez autêntico e amado, o indivíduo resolve encomendar uma cópia. Isso até se justifica no caso de uma imagem específica, sonho inviável de consumo, que pode (veja bem: pode) ser imitada com razoável exatidão, dependendo do artista contratado.  O que me parece incompreensível é quando essa compra se torna um hábito, a ponto de alguém cobrir as paredes da própria casa com telas clonadas de quadros famosos – e sem qualquer destreza nos trabalhos: os quadros geralmente são ridículos, paródias ou insultos à peça verdadeira.
         Há, por exemplo, certos estabelecimentos comerciais que têm essa preferência decorativa. Seus donos consideram um toque cultural pendurar imagens de estilos ecléticos e pensam que, quanto mais variada a gama de reproduções – quase todas muito bizarras –, mais “intelectual” será o ambiente. Num determinado café que gosto de frequentar, encontro ensaios impressionistas que, do nome, só deixam a impressão de que o artista quis imitar Monet. Numa loja de calçados, deparo com arremedos de Lautrec – e creio que esses quadros, com as mulheres no cancan que projeta as botas para cima, seriam uma boa ideia para o lugar, caso a pintura não tivesse escorregado: há um ponto em que a aquarela se confunde com nódoas de mofo na parede.
          Um restaurante ostenta reproduções de Vermeer, e aquela que é sua obra mais famosa aqui deveria se chamar Moça com brinco de pérola e paralisia facial. Bem ao lado deste rosto rígido, há uma cópia de Rembrandt, com cores tão esquisitas que talvez se intitule Autorretrato com hepatite. No consultório odontológico de um amigo, colocaram réplicas de Modigliani, com figuras que seriam muito fiéis, se ele tivesse pintado ETs... Também não deixo de lembrar as marinhas brutais, quase rupestres, que me foram apresentadas como versões do etéreo Turner, na casa de uma prima!
          São episódios extremos, bem sei – mas revelam o senso estrábico que boa parte do nosso público tem, na hora de consumir arte. Sem perceber a armadilha em que caem, as pessoas dão preferência ao “estrangeiro” (mesmo que este seja arremedado), em detrimento de obras locais, com valor estético e originalidade.

Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/02/01/noticiasjornalopiniao,2776558/as-reproducoes.shtml)

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