Existem obras de arte que nos impõem um renovado assombro. O reencontro com elas não significa a solução de um mistério ou a sensação de andar por território conhecido. Ao contrário, deparamos com antigas imagens como se fossem sempre novas e impenetráveis.
É isso o que ocorre com a série Adaptación Orilla, de Florencia Rodríguez Giles. Há três anos, as fotografias estiveram expostas dentro do projeto “Americanidade”; agora, voltaram ao museu do Dragão do Mar, na exposição “Estrangeiros”. A rigor, são as mesmas peças. Na prática, porém, as fotos reaparecem sob outra perspectiva, em diferente densidade.
A arte de Florencia, especialmente a série mencionada, parece criar um relato de atmosfera penumbrosa, mística. Os espaços fotografados são quase todos internos, com uma luz mágica que desabrocha ou explode de uma janela. Há figuras com máscaras ou chapéus de pano, caminhando sobre a grama que cresce violenta pela sala. As pessoas (ou criaturas) têm rostos serenos como moldes de cera – e assim também é a cabeça que repousa solta numa cômoda, fazendo contraste com o balé de alguns corpos, sua expressão ereta.
Há cabeleiras desfocadas e gente que invade um jardim tropical e terrível. Certos sujeitos parecem alienígenas, sobretudo aquele calvo, diante da mulher bicéfala que ignora um corpo sofrido a seus pés, sobre um piso em que se movem tartarugas. Há espaço para um cão, na agitação atarefada de um dos quadros: as pessoas ou manequins tocam montes de cabelo e outros objetos peludos, como se cuidassem de fazer uma mudança. Na sequência, desfilam com bagagem às costas, seguindo para fora da casa com colunas de árvores e piso de folhagem.
Uma das criaturas olha para o crânio que tem nas mãos, e ele resplandece feito uma joia. Todos vestem longas batas pretas e são andróginos, carecas ou com perucas de pano, ou ainda levam cabeleiras de planta ou no feitio de crina de cavalo, descendo pelo dorso. Numa das fotos, duas figuras olham para a câmera, e nós – espectadores – sentimos o constrangimento de invadir esse silêncio, essa intimidade absurda e dolorosa. Há névoa e sombra sempre, mesmo quando alguém contempla uma parede descascada, como se estudasse um mapa na linha das infiltrações.
Como a autora afirma em entrevista, o lugar em que passam as ações tem uma temporalidade específica, mas os personagens “poderiam ser medievais, contemporâneos disfarçados, antigos e imaginários”. É esse um dos contrastes que gera o estranhamento na obra de Florencia Rodríguez. Estas fotografias trazem um sabor específico que (talvez não por acaso) lembra os contos de Cortázar, outro incrível argentino.
Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 27/10/2010. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/10/27/noticiaopiniaojornal,2057050/florencia.shtml)
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