Uso óculos desde os cinco anos. Numa família de professores e míopes, lembro minha sensação de triunfo quando anunciaram que eu também deveria carregar aqueles acessórios de visão. Os óculos eram instrumentos mágicos, e não somente porque me traziam a limpidez de enxergar a distância, mas sobretudo pela extensão que criavam sobre meu rosto. Aquilo era uma moldura ou vestimenta que me protegia e me tornava, de algum modo, secreta e indevassável. Sim, porque eu, desde muito criança, já tinha gosto pela ficção, o que equivale a dizer: gosto pelo mistério.
Em toda a infância e adolescência, creio ter quebrado os óculos por duas vezes apenas – e tal acidente me deixava em desespero, inconsolável. Os cacos de vidro e armação eram mais trágicos que uma boneca mutilada ou um livro feito em pedacinhos. Eu amava meus óculos como se ama um pedaço do corpo, e ver sua destruição (mesmo sabendo que depois teria um novo modelo) me parecia algo terrível.
Houve momentos, entretanto, em que abandonei os óculos. Na época de escola, tirá-los podia ser o único recurso contra a timidez. Nas aulas de teatro, por exemplo, eu atuava de “rosto limpo”. Via claramente os companheiros com quem contracenava, mas ignorava os outros, espectadores afastados. A plateia, assim, nunca era crítica ou temível por suas expressões: transformava-se em massa de neblina, confundia-se com as sombras da sala.
Hoje, nas raras ocasiões em que a vaidade ou as exigências sociais exigem, uso lentes de contato. Mas é quando quero ter uma nova visão – desfocada, impressionista – que aproveito a miopia. Tiro os óculos sob as mais variadas luzes: na praia, ao entardecer, na penumbra, sob a água das piscinas... Vejo os coágulos dos postes, numa avenida à noite, ou percebo as formas sinuosas que cada objeto adquire.
Todo míope tem à disposição um exercício de abstracionismo, quando a realidade cansa: basta ficar com os olhos nus. Isso, para mim, nunca foi um defeito de visão, mas uma dádiva, virtude das mais criativas. Adoro o modo como as coisas se tornam de repente compactas, mas paradoxalmente suaves, em sua imprecisão de contornos. Súbito – ponho os óculos e... milagre! – enxergo ao longe, vejo as fisionomias que antes eram manchas, as letras que pensei serem borrões.
Chego a acreditar que esse duplo modo de ver o mundo cria afinidades entre os seus usuários. Afinal, o meu amado também é levemente míope, e faz parte do nosso fascínio despir os óculos para encontrar melhor o rosto do outro. É preciso descobrir, de maneira muito próxima, a curvatura dos cílios, o mapa da pele, o desenho das sobrancelhas, as cores nítidas do corpo, enfim. Tanta dedicação às minúcias e paixão pelos detalhes – eu garanto – só é possível para nós, os míopes.
Tércia Montenegro (crônica publicada na coluna Opinião, do jornal O Povo, em 13/10/10. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2010/10/13/noticiaopiniaojornal,2052035/nos-os-miopes.shtml)
Bem aventurados os míopes e os astigmáticos, porque deles é a Terra! (estenda-se ao cdf, ao portador de obesidade (eu), para aquele que tem labirintite, asma, hipertensão, rinite alérgica (excetue-se caspa) mas, primordialmente, miopia (eu, novamente).
ResponderExcluirO importante mesmo é converter o revés em virtude.
Engraçado, também tive a sensação de triunfo qdo me disseram que eu usaria óculos! Porque eu ficaria mais parecida com meu pai e eu o achava supergato, rs, aliás, temos o mesmo problema: astigmatismo!
ResponderExcluirbj
adorei a crônica
saudades
C!
Ótima essa crônica! Hoje preciso usar óculos, depois de uma vida inteira meus olhos reclamam. Mas sempre considerei óculos mais que necessidade porque tornam-se íntimos demais do olhar, o que é dizer além dos olhos. E refazem a pessoa em relação a si e aos outros.
ResponderExcluirAbraços!
Nunca gostei de óculos. Não vejo beleza neles, nem na dependência que temos deles, o que é pior. Encontrar um óculos que tenha a nossa cara (ou vice-versa) é muito complicado. Estou precisando trocar os meus e não consigo um substituto. Se este quebrar, será o fim.
ResponderExcluirBom mesmo é fazer uma cirurgia e usar apenas óculos escuros, mais charmosos e variados. Quando se pode, é bom.
É isso.