Quando vi pela primeira vez o trabalho de Claudia Andujar, logo tive em mente as obras de Pierre Verger. Havia muitas razões para aproximá-los, e a mais superficial apontava ambos como fotógrafos estrangeiros que fizeram do Brasil sua voluntária pátria.
Descobri Claudia no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Numa das salas de exposição, deparei com uma série dos seus retratos de ianomâmis. Cada um deles – não importava a idade, o sexo – trazia pendurada no pescoço uma plaqueta com um número. Foi a maneira de identificar os que já tinham sido vacinados, a forma encontrada pela pequena equipe assistencial, para organizá-los numa espécie de lista. Claudia passou cinco anos fotografando os ianomâmis. Em quase todas as imagens, vemos que os números são artifícios violentamente alheios à cultura, à expressão facial daquela gente de olhos rasgados e selvagem timidez.
Apenas dois idosos sorriem para a câmera, um com a boca escancarada, com dentes ruins e expostos de um jeito irreverente, quase pop. O outro pisca na hora da foto; de repente, percebo que de fato não são velhos; devem ter trinta, no máximo quarenta anos. Mas é que seus rostos têm marcas de floresta...
Um rapazinho gracioso – o número 4 – põe o dedo na boca e inclina a cabeça; quase ri. Tem uns olhos imensos, meio extraterrestres. Os índios de números 79 e 85 ensaiam um sorriso, mas estão desconfortáveis, numa pose de galãs. E as moças de seios nus, com meninos no colo (que seguram com displicente amor), têm na maioria um ar distraído. O bebê de número 20 chora; tem os lábios contritos, duas lágrimas se empoçam sob seus olhos.
A exposição se chamava “Marcados para”, e o texto explicativo trazia uma nota pessoal, sobre a família de Claudia. Seu pai, um judeu húngaro, recebeu o rótulo da estrela-de-davi pouco antes de ser levado para Auschwitz. Aquele símbolo, costurado às roupas, era uma marca que conduzia à morte. Ao contrário, a plaqueta identificatória marcava os ianomâmis com intenções de vida e saúde.
Ora, as fotografias de Pierre Verger também são, a um tempo, obras de arte e de antropologia. Diante do preto-e-branco de suas imagens, inclinam-se igualmente os estudiosos e os maravilhados. E há – para além do que o corpo e a paisagem revelam – uma tentativa de ultrapassar a cena e mostrar o abstrato, a pulsão do sentimento, o viés supracultural. Assim, retratando rituais religiosos de povos africanos ou indígenas, Pierre e Claudia conseguiram (cada qual dentro de seu tempo e sua intenção) elaborar um estético espiritualizado. É neste ponto, creio, que reside o traço que mais os aproxima. As fotografias de ambos evidenciam qualquer coisa intangível que, em última instância, une todos os artistas. É algo relativo a uma sensibilidade específica, que ultrapassa estilo ou modo de se expressar.
Tércia Montenegro (artigo publicado hoje, na coluna Opinião do jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/01/19/noticiaopiniaojornal,2091551/pierre-e-claudia.shtml)
É bem verdade que nas duas fotografias há algo de intangível. Mais parecem pinturas, inabaláveis; tanto na beleza, quanto em todo o sentimento presente nelas.
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