LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Atos de fé e loucura

Finalmente concluí a minha "fase Canetti", ao menos no que diz respeito à bibliografia principal: a trilogia memorialística e o romance Auto-de-fé. Aliás, não creio que minha leitura desta última obra pudesse ter sido tão proveitosa, sem os livros anteriores. Está cada vez mais claro para mim que a autobiografia é um elemento imprescindível, não para a interpretação, mas para a criação de uma obra artística - e, como consequência, para a compreensão do processo criador que gerou aquele texto. Assim, vejo como marcas fortes de vivência o amor pelos livros, o irmão médico Georges, a esposa mais velha, a própria misoginia que acometeu Canetti na juventude (algo que ele obviamente superou, para ter se casado duas vezes), o encanto por Michelangelo, o estudo sobre as massas, a visão de um incêndio... Nada disso, porém, faria uma obra sem o talento que o autor teve para com a linguagem, ou sem o jogo narrativo que constrói personagens capazes de inspirar náusea e revolta. O riso mistura-se ao repúdio, e Kien (este novo Quixote) é o mártir da loucura alheia. Enquanto esteve só, em sua solidão insana, nenhum perigo o rondava. O mal só veio no convívio com os outros, seres absurdos todos, num circo maníaco de obsessões.
A imolação pelo fogo - martírio e censura a um só tempo - reflete a subjacente ideia da literatura não como auto-de-fé (sacrifício), mas como ato de fé, gesto irremediável de esperança. Não essa esperança comezinha e cotidiana, voltada para qualquer diversão passageira, ou mesmo para um aprendizado grandioso. A fé presente na literatura não se direciona ao leitor, pois não é ele o deus exaltado por este sentimento. O autor é um devoto do seu próprio instrumento de criação, põe nele todo o investimento, disciplina e concentração - sob pena de ser tido como louco pelos demais, que não compreendem tamanho ostracismo. Às vezes, inclusive, sucede de um escritor realmente enlouquecer, embora tal desfecho nunca seja garantia de talento irrepresável: também os simplórios endoidecem. É com este paradoxo inquisitorial que Canetti ergue, num só livro, uma biblioteca inteira, que (desfeita em cinzas, após a leitura) instaura uma rede de influências e riquezas. Tudo isso já existia (claro) dentro do próprio autor - mas lhe foi necessário conceber um livro para poder contemplá-lo. É o que diz um trecho do posfácio:
"A crueldade daquele que se obriga à verdade atormenta sobretudo a ele próprio: o que o escritor inflige a si próprio é cem vezes mais do que faz ao leitor." (p.628)

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