BABETTE
Dentre todos os que tiveram influência sobre meus hábitos vegetarianos, ninguém foi mais importante que Babette. Seu nome, retirado de um filme, evoca a visão de banquetes, ágapes infinitos e suculentos. Não à toa: eu realmente encontrei Babette numa festa assim.
Anos atrás, eu alternava minhas incursões no magistério com trabalhos fotográficos em aniversários, casamentos ou formaturas. Desde que houvesse bom tempo, lá estava eu, com minha câmera. A ocasião a que me refiro era especialmente chique, cheia de mulheres com penteados escorridos. Eu já havia banhado com flash todos os sorrisos artificiais presentes e me dava ao luxo de descansar um pouco, enquanto serviam o jantar. Foi então que, para meu horror, percebi qual era o prato principal: um pato inteirinho, com todas as penas, completamente íntegro. Tinham feito algum trabalho estético para que ele brilhasse num azul-turquesa, que era a exata cor das toalhas das mesas. E ali, cada grupo de convidados recebia a sua porção – ou melhor, o seu pato, numa travessa. Reparei que os exemplares deviam ser ainda filhotes, pelo tamanho, e estavam dispostos numa pose congelada, como se arrumados por um taxidermista. Diante dos meus olhos mudos de pânico, o garçom colocou um dos bichos e acrescentou um prato vazio, com talheres.
Nenhum dos convidados estranhava a refeição; ao contrário, todos espetavam suas aves e gargalhavam, ao trinchá-las por entre penas azuis. Faltavam alguns minutos para eu fosse liberada do evento, e decidi mergulhar a vista na câmera, repassando as imagens gravadas na memória da máquina. Era difícil distrair-me, e eu tinha vontade de fugir e nunca mais entregar as fotos daquela gente sórdida. No entanto, veio a ideia de fotografar o pato servido à minha frente, para o caso de uma posterior denúncia. Foi quando percebi um tique, um movimento mínimo, da criatura turquesa que despertava.
O pato parecia embriagado; se não chegou a ser cozido, pelo menos tinha sofrido alguma pancada. Em segundos, porém, agitava as asinhas, querendo descer da travessa. Com o coração saltando, impedi que o bicho se estatelasse da mesa ou fosse visto por um garçom. Peguei-o – e fiquei atarantada. Se o levasse ao banheiro para lavá-lo da tinta, certamente encontraria várias dondocas fofocando. Poderia convencê-las de que carregar um pato numa mão e uma câmera na outra fazia um estilo cult – mas não estava disposta a palhaçadas. Resolvi escapar da festa na mesma hora.
Em casa, a presença da ave agitou meus gatos, mas consegui tranquilizar todo mundo depois que o pato – já limpo e alimentado – foi trancado para dormir num banheiro. Na manhã seguinte veio o batismo: o pato era fêmea, e tinha me presenteado com um ovo, talvez o seu primeiro.
Uma semana depois, deixei Babette no Eusébio, na fazenda de um amigo que cria patos pelo prazer de vê-los nadar no espelho d’água. Ela foi bem recebida e virou uma pata praticamente igual às outras, mas eu conseguia distingui-la por certa sombra azulada, que nunca se despregou totalmente de suas penas.
Babette fez com que eu nunca mais comesse aves. Ah, e fez também com que eu não entregasse as fotos daquele evento...
Tércia Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
Poderia chamar esse evento de uma tremenda patascada!
ResponderExcluirQue história...hehe
ResponderExcluir