LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Burocracia

BUROCRACIA

O perfeito burocrata é aquele que, diante de uma pessoa, só acredita em sua existência se ela lhe apresentar identidade, CPF e comprovante de endereço. A cada documento ausente, o burocrata comemora: exigirá assinaturas e certidões, com um êxtase particular. Sim, na verdade este é seu único prazer. O burocrata aprendeu a nunca festejar; permanece sério, com sua gravata listrada, atrás de um balcão. É insensível a piadas, apelos ou ironias – mas põe-se muito comovido se recebe uma pilha de papeis (carimbados, é lógico). Manipula esse objeto de desejo, quase estremecendo; detém-se em cada página, sente a textura dos selos oficiais, arrepia-se ao ver a rubrica do tabelião.
O burocrata orgulha-se de cumprir ordens e “exercer a cidadania” – expressão que, no seu entender, envolve o pagamento de impostos, a leitura rigorosa de três jornais diários e a obediência a qualquer lei escrita. É um maníaco que detesta a desordem e, por isso, abomina sonhos, devaneios e toda arte de vanguarda. Por não conceber a ideia do inefável, o burocrata é geralmente ateu, embora tenha chegado a esta convicção após o minucioso estudo de vários livros sagrados, que lhe pareceram insuficientes por não trazerem anexos com cópias autenticadas. Considera, por exemplo, uma improcedência afirmar que Deus tem incontáveis nomes, muitos deles secretos ou impronunciáveis. Não compreende o mistério da trindade e tampouco daria crédito a uma aparição ou milagre. “Apenas” – garante – “se o Vaticano fornecesse um atestado.”
Apesar da descrença, o burocrata às vezes frequenta igrejas, porque aprecia a tradição e os rituais. Repete suas rezas como um autômato, com o mesmo tom de voz que usa para evocar (de memória) as cláusulas de um regimento, durante reuniões. Aliás, se existe uma coisa que o burocrata adora é uma reunião. Poderia alimentar-se eternamente de café e biscoitinhos, enquanto ouve a leitura de atas. A cada evento desse tipo, ele se destaca: pede apartes, defende argumentos e vírgulas, solicita inclusões de pauta... Enxerga a si mesmo e aos colegas como um quórum que não pode ser desfeito antes da hora exata.
Há muitos outros detalhes psicológicos desta categoria profissional, mas vou concluindo em linhas gerais. O burocrata se sente poderoso se alguém o considera irredutível, e ao longo dos anos adquire uma opacidade fisionômica. Seu objetivo é exibir o rosto frio de um robô. Tenho observado o seu perfil, durante inúmeras visitas a repartições. Um burocrata odeia ser contemplado, então eu sempre disfarço, fingindo vigiar o painel de senhas...

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/04/11/noticiasjornalopiniao,2818534/burocracia.shtml)








2 comentários:

  1. Gostei,Tércia.
    Conheço alguns burocratas,infelizmente.

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  2. Oi Tércia,

    Conheci um desses burocratas "germânicos" que morria de medo de terremoto porque poderia desarrumar a gaveta dele, re re!

    Abraço,
    Manuel Bulcão

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