A
VIDA SECRETA
Todo
mundo deveria ter uma vida secreta. Escrevo esta frase inicial e já pressinto o
leitor alerta, disposto a se eriçar. Pois a ideia de uma rotina misteriosa
geralmente é sinal de vícios, manias ou tendências inconfessáveis. Quem nunca
conheceu um perfeito cidadão, que na surdina carrega certo impulso estranho? O
hábito secreto pode ser inofensivo, porém vergonhoso – como no caso daquela
senhora idosa que era conhecida por suas proezas culinárias, mas também gostava
de guardar, na despensa, pilhas e pilhas de revistas pornográficas.
É óbvio que não estou
defendendo mistérios criminais, tendências mortíferas, taras, nada disso. Uma vida
secreta pode se concretizar com um simples hobby ou com uma atividade paralela
à rotina profissional, algo que fuja das ações obrigatórias. Imaginem, por
exemplo, que aquele porteiro do clube esportivo não é apenas um encarregado de
fiscalizar o vaivém de pessoas e carros. À noite, quando chega em casa, ele se
dedica a compor sambas e modinhas, canções sem compromisso e quase condenadas a
permanecerem incógnitas. Talvez ele precise de talento, mas não é isso o que
importa: o seu exercício musical destina-se a ventilar a vida, não é uma
estratégia para se tornar rico.
Aquele outro rapaz, que
abriu um pequeno comércio ao lado do clube, também escapa do tédio nas horas
vagas: dedica-se ao aeromodelismo com uma paixão de criança. E agora, pela
calçada, passa uma jovem com todo o jeito de universitária. Ela não somente cumpre
tarefas de estudo e se diverte com os amigos de sua idade; nos fins de semana,
arrecada fundos para um bazar e envia auxílio aos albinos da Tanzânia.
Em
todos esses “desvios” da mesmice, existe um elemento mágico que faz a pessoa se
sentir diferente, especial. Ela adota prazeres que não se compartilham, coisas
que parecem ridículas ou inúteis para o juízo alheio. Sobretudo, a pessoa faz
suas escolhas por motivação íntima, sem seguir recomendações, campanhas ou
projetos de ninguém. A satisfação está em realizar o ato; não é preciso ostentá-lo.
Em
tempos de massificação virtual, ganhar plateia, de qualquer tipo que seja,
virou exigência – daí porque uma vida com lados secretos sugere transgressão ou
imoralidade. Mas, sob tal argumento, esconde-se o perigo do controle sobre o
gesto livre. Que eu saiba, nenhuma ditadura conseguiu informações com tanta
minúcia como fazem certos ambientes virtuais – e (o que é mais grave) o próprio
usuário deseja ser seguido, vigiado. Para esses reféns da autoconfissão e do
aplauso, ter uma hora solitária – ou uma vida secreta – pode ser a única chance
de encontrar a individualidade...
Tércia Montenegro
(crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/06/06/noticiasjornalopiniao,2853391/a-vida-secreta.shtml)
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