COMO
AFASTAR UM LEITOR
O fato de possuir uma
coleção de livros em casa não me impede de frequentar bibliotecas, públicas ou
particulares. Estas últimas pertencem a amigos, que geralmente me recebem com
um misto de cortesia e cautela, embora eu jamais tenha deixado de devolver um
livro sob empréstimo. Eu compreendo tal comportamento; também sou ciumenta e tenho
obras que não entregaria nem sob tortura. O que me parece estranho é o mesmo princípio
de posse egoísta aplicado a uma biblioteca pública.
Mas talvez eu esteja
romantizando demais... As figuras antipáticas que já me atenderam em alguns
desses locais não agem com zelo ou senso de preservação; é pura má vontade ou
preguiça. Em certos casos, o próprio ambiente parece feito para afastar o
leitor: estou me lembrando do equívoco arquitetônico que jogou para o quinto
andar, de um prédio sem elevador, a sala da biblioteca numa escola onde
estudei.
Como se não bastasse a
prova física que se tinha de vencer para ali chegar, quando o aluno finalmente
encontrava a porta com a tabuleta “Biblioteca”, via apenas uma série de mesas e
cadeiras (todas vazias, claro) e, um pouco mais além, um nicho gradeado atrás
do qual se escondiam poucas estantes magras. Ali ficava uma jovem sonolenta,
que devia se distrair telefonando para todas as pessoas do mundo (na minha
época de estudante, não existia internet). Quando o aluno pedia para entrar e
escolher um livro, ela dizia que não era possível. Ninguém buscava os livros, a
não ser a própria moça apática; ela devia anotar o título e achá-lo na
prateleira, para depois preencher a ficha de empréstimo. Além do mais, é óbvio que
não havia nada realmente interessante,
de ficção ou poesia. “Temos somente obras didáticas”, ela me revelou – e foi a
última ocasião em que subi aqueles lances de escada.
Em outra escola, ainda
na minha adolescência, a biblioteca ficava no térreo, e o acesso aos livros
(alguns, muito bons) existia de fato. Não puseram nenhuma mocinha despreparada
como sentinela; a responsável era uma bibliotecária, profissional da área.
Apesar de tudo isso, creio que a mulher não simpatizava comigo, talvez porque
diariamente eu a perturbasse, pedindo novos títulos e prazos. Ela teve sua
chance de vingança quando certo dia, no auge de uma crise alérgica, eu coloquei
uma máscara para manipular uns livros velhos. “Você faz isso para chamar a
atenção, é?” – ela praticamente gritou, quebrando a zona discreta que eu estava
conseguindo manter. A partir daí, como o mal estava feito, assumi a máscara com
orgulho, tão logo entrava na biblioteca – mas, no íntimo, sempre achei que aquele
comentário revelava uma hostilidade, um desejo de afastar leitores.
É lógico que, em minhas
andanças, encontrei ótimas bibliotecas, com funcionários sensíveis e respeitosos.
Mas como a felicidade não deixa cicatrizes, acabo remoendo as piores
experiências... Penso no quanto um leitor pode ser excluído, isolado como
criatura estranha ou ameaçadora de uma ordem. E que ordem seria essa? A de
manter os livros estreitos e imóveis, tão fechadinhos quanto os seus supostos
guardiães?
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também em http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/06/20/noticiasjornalopiniao,2862357/como-afastar-um-leitor.shtml )
Você tem razão! Uma biblioteca pública é mais que um lugar onde livros são organizados para empréstimo. Carece ser um local amplo e agradável. Sobre os funcionários, faz-se necessário uma capacitação a mais, ganhos melhores e por aí vai. Quanto às bibliotecas de escolas, creio que isso melhorou do tempo em que era estudante até o momento. Tomando minha realidade de interiorano (Russas-CE), penso que é preciso ampliar as bibliotecas por bairros. Pensando assim, podemos ir mais adiante e lograr um sonho: centros de artes para crianças e adolescentes onde, como ponto central, haja uma biblioteca. Mas do jeito que as secretarias de cultura dos municípios têm sido, isso é sonho meu mesmo.
ResponderExcluirO prof. Carlos Carvalho levou essa crônica para a sala e lembro que deu muito pano pras mangas. A disciplina era "A crônica na sala de aula". Um beijo, Tércia.
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