O
LUGAR DOS DEUSES
Atraída pelas palavras
mágicas, tomei o caminho de Ecatelpec, para chegar a Teotihuacán. O México me
ensinou que a arqueologia é uma prática de encantos: restaura o passado para
ativar um tempo impossível, visível muito além da pedra, dos artefatos ou
registros concretos. Esse tempo se consolida nas histórias, nos mitos que
justificam as vidas e paixões dos povos.
Pois ali estava eu, num
pedaço da Mesoamérica, entre suas pirâmides reconstruídas. Tentava escapar dos
ambulantes que vendiam colares, flautas ou estatuetas em obsidiana, sentindo-me
tão deslocada quanto qualquer turista em solo sagrado. Eu me concentrava nas
narrativas, apesar de toda a agitação comercial – e houve um momento em que
pensei ver, nos resquícios milenares daquela arquitetura, a justificativa para
o nome: “lugar onde os homens se tornam deuses” – Teotihuacán, na língua náuatle.
Nesse idioma xamânico,
também foi batizada uma raça de cães negros, com jeito de escultura. Os
xoloitzcuintles, conforme a lenda, ajudavam seus donos a fazer a passagem para
o além – daí o seu nome derivar da palavra “xolotl”, que indica o deus da
morte. Vi alguns destes belos animais nos jardins do museu Dolores Olmedo.
Lola, como era mais conhecida, foi uma grande mecenas da arte mexicana, e hoje
sua casa guarda a maior coleção de quadros do Diego Rivera, que, aliás, criava
xoloitzcuintles...
E por falar em pintores
e museus, o México nesse ponto se torna um país para o êxtase. Além do Rivera,
hiperbólico nos murais do Palácio Nacional e do Palácio de Belas Artes, temos
Frida Kahlo, Nahui Olin e Remedios Varo, temos Orozco e Roberto Montenegro –
sem contar as exposições internacionais, presentes em muitos espaços. Na
literatura, pode-se lembrar Juan Rulfo e Carlos Fuentes, B.Traven e Octavio Paz,
fora tantos outros artistas que não caberiam nesta crônica, ainda que ela se
transformasse numa simples lista. Mas o México tem muito mais. A criação dos
deuses palpita em sua atmosfera, nas ruas em que se apresentam músicos e dançarinos;
no rosto de seus habitantes, que repetem feições ancestrais. Pelo metrô, passam
dois milhões de pessoas por dia – e a maioria delas tem cabelo liso e olhos
rasgados, um sorriso asteca.
Em Teotihuacán, eu compreendi
a síntese de uma cultura quando, em meio ao passeio, como que para quebrar o
sol inclemente sobre as pedras, caiu um verdadeiro dilúvio. Tudo aconteceu de
modo tão repentino e brusco, que parecia um efeito cênico, descontrolado (a
natureza se torna verossímil quando manda avisos, pequenas doses de desastre).
Sem maneira de se
abrigar, as pessoas corriam em muitas direções. Algumas procuravam um teto
inexistente, um toldo anexo às pirâmides. Como boa cearense, eu me alegrei com
a água e fiz uma reverência a Tláloc, deus da chuva. Não foi dessa vez que ele
exigiu sacrifícios, felizmente – e eu deixei o México no dia seguinte, com a
alma vibrando de emoção.
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no endereço http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2012/08/01/noticiasjornalopiniao,2889793/o-lugar-dos-deuses.shtml)
Abaixo, foto da imagem de Tláloc, diretamente do Museu de Antropologia do México:
Juro que senti os pinguinhos de chuva. Obrigada!
ResponderExcluirP.S.: enquanto lia, vibrava sozinha, torcendo... vai, encara a chuva :)
K.
Viajei com você, Tércia, fantástico!
ResponderExcluirBjo