LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Os músicos de Denver


OS MÚSICOS DE DENVER

Na sequência da viagem ao México, arrisquei-me pelos Estados Unidos somente para pisar em Denver, terra dos beats. Mas o grande motivo não era palmilhar trilhas de artistas boêmios e santificados pelo delírio aventureiro, como Kerouac. Eu pesquisara sobre um local esquisito, chamado The cage’s sounds, uma espécie de viveiro para aves adestradas, que ali interpretam artistas famosos. Cada pássaro imita um instrumento, conforme sua predisposição natural. Um deles, por exemplo, garante o som de trompete ao estilo de Andy Diagram, da clássica banda dos anos 80 The Pale Fontains. Há ainda guitarras idênticas às de Blixa Bargeld, do The Bad Seeds, além do baixo pulsante de Sooyoung Park, da Bitch Magnet, e piano igual ao de Keith Jarrett. Tudo isso em Denver, cidade mágica para os bichos musicais, quase como aquela outra, Bremen, da fábula milenar...
Com tanta propaganda, eu e o amado consideramos aquela atração irresistível. Chegamos bem cedo; The cage’s sounds mal havia começado a formar uma fila de espectadores diante da sala onde aconteciam as audições. O programa do dia anunciava um pássaro que imitaria o vocal sibilante de Jónsi, do Sigur Rós, por dez minutos, e em seguida um outro, disposto a fazer o som do baterista John Ribombayne, da banda Baú Metálico, por quinze minutos.
O sol estava a pino, e certamente iríamos esperar um bocado na fila, contando com o horário previsto e os naturais atrasos dos “artistas”. Aliás, eu começava a pensar nos detalhes daquele show – como seria convencer os pássaros a iniciar uma canção? Será que havia maestros dando a “deixa”, ou músicos humanos acompanhando o instrumentista principal? Sobretudo, eu me preocupava com o método de adestramento, inegavelmente torturante, com um bicho condenado a ouvir milhares de vezes certa música, até conseguir cantá-la. E quando ele errava, ou esquecia uma parte – o que o seu treinador fazia? Eu repassava mentalmente relatos de Skinner e Pavlov, sob o calor escaldante. Enquanto isso, dúzias de crianças corriam ou plantavam bananeira nas imediações; elas prometiam um público inquieto, entrando na sala junto com seus pais, aquelas duplas de americanos rosados, suando em bagas, sob chapéus e bonés.
Imaginei que era o efeito de uma desidratação alucinante, quando ouvi o amado dizer: “Vamos embora”. Afinal, era ele o principal interessado naquele espetáculo de homenagem musical; ele colecionava os vinis, pôsteres e versões de todos aqueles artistas, tocadas em aparelhos de som sensibilíssimos... Se havia alguém capaz de ouvir os pássaros e julgá-los em sua fidelidade sonora, era ele – e, de repente, estava desistindo? Por qual motivo? Achei que fosse ouvir algo sobre o calor ou o tempo de espera, mas o amado apontou um detalhe no programa musical. Ali estava a informação de que Ribombayne era inglês, e não irlandês, conforme fiquei sabendo. Um erro desse tipo punha tudo em descrédito – e assim deixamos Denver e seus pássaros, numa frustração de turistas que atravessam um deserto.

Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no respectivo site.)

2 comentários:

  1. Não chegou a ser tão gritante quanto com Urik (rs), mas achei graça da tua lembrança preocupada, Tercinha. E agora me lembro de que recentemente ouvi que em Pavlov não há condicionamento, mas efeito de significante sobre o corpo. Ainda não pensei sobre isso, mas agora posso dizer pelo menos que me parece não ser assim com os animais, já que a linguagem é o que nos separa deles. Então voltemos à tortura imaginativa dos bichos treinados a cantar. Ai!

    K.

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