OS
MÚSICOS DE DENVER
Na sequência da viagem ao
México, arrisquei-me pelos Estados Unidos somente para pisar em Denver, terra
dos beats.
Mas o grande motivo não era palmilhar trilhas de artistas boêmios e
santificados pelo delírio aventureiro, como Kerouac. Eu pesquisara sobre um
local esquisito, chamado The cage’s sounds, uma espécie de
viveiro para aves adestradas, que ali interpretam artistas famosos. Cada
pássaro imita um instrumento, conforme sua predisposição natural. Um deles, por
exemplo, garante o som de trompete ao estilo de Andy Diagram, da clássica banda
dos anos 80 The Pale Fontains. Há ainda guitarras idênticas às de Blixa
Bargeld, do The Bad Seeds, além do baixo pulsante de Sooyoung Park, da Bitch
Magnet, e piano igual ao de Keith Jarrett. Tudo isso em Denver, cidade
mágica para os bichos musicais, quase como aquela outra, Bremen, da fábula
milenar...
Com tanta propaganda, eu
e o amado consideramos aquela atração irresistível. Chegamos bem cedo; The
cage’s sounds mal havia
começado a formar uma fila de espectadores diante da sala onde aconteciam as
audições. O programa do dia anunciava um pássaro que imitaria o vocal sibilante
de Jónsi, do Sigur Rós, por dez minutos, e em seguida um outro, disposto a
fazer o som do baterista John Ribombayne, da banda Baú Metálico, por quinze
minutos.
O sol estava a pino, e
certamente iríamos esperar um bocado na fila, contando com o horário previsto e
os naturais atrasos dos “artistas”. Aliás, eu começava a pensar nos detalhes
daquele show – como seria convencer os pássaros a iniciar uma canção? Será que
havia maestros dando a “deixa”, ou músicos humanos acompanhando o
instrumentista principal? Sobretudo, eu me preocupava com o método de
adestramento, inegavelmente torturante, com um bicho condenado a ouvir milhares
de vezes certa música, até conseguir cantá-la. E quando ele errava, ou esquecia
uma parte – o que o seu treinador fazia? Eu repassava mentalmente relatos de
Skinner e Pavlov, sob o calor escaldante. Enquanto isso, dúzias de crianças
corriam ou plantavam bananeira nas imediações; elas prometiam um público
inquieto, entrando na sala junto com seus pais, aquelas duplas de americanos
rosados, suando em bagas, sob chapéus e bonés.
Imaginei que era o
efeito de uma desidratação alucinante, quando ouvi o amado dizer: “Vamos
embora”. Afinal, era ele o principal interessado naquele espetáculo de homenagem
musical; ele colecionava os
vinis, pôsteres e versões de todos aqueles artistas, tocadas em aparelhos de
som sensibilíssimos... Se havia alguém capaz de ouvir os pássaros e julgá-los
em sua fidelidade sonora, era ele – e, de repente, estava desistindo? Por qual
motivo? Achei que fosse ouvir algo sobre o calor ou o tempo de espera, mas o
amado apontou um detalhe no programa musical. Ali estava a informação de que Ribombayne
era inglês, e não irlandês, conforme fiquei sabendo. Um erro desse tipo punha
tudo em descrédito – e assim deixamos Denver e seus pássaros, numa frustração
de turistas que atravessam um deserto.
Tércia Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no respectivo site.)
skinner e pavlov! hahahahahahahahahah
ResponderExcluirNão chegou a ser tão gritante quanto com Urik (rs), mas achei graça da tua lembrança preocupada, Tercinha. E agora me lembro de que recentemente ouvi que em Pavlov não há condicionamento, mas efeito de significante sobre o corpo. Ainda não pensei sobre isso, mas agora posso dizer pelo menos que me parece não ser assim com os animais, já que a linguagem é o que nos separa deles. Então voltemos à tortura imaginativa dos bichos treinados a cantar. Ai!
ResponderExcluirK.