A
CASA DE KAHLO*
Já comentei na crônica
anterior, quinze dias atrás, que a Cidade do México é um esplendor em museus –
mas, em meio a tantas opções, a Casa Azul (que era residência da pintora Frida
Kahlo) ainda se destaca. Faz toda a diferença andar por um ambiente que foi
habitado pelo próprio artista, mesmo que na maior parte dos espaços hoje se perceba
um “arranjo” artificial, criado para expor os objetos, e não mais para
desfrutar deles. Na verdade, o único aposento que parece ter sido realmente
mantido, em composição e atmosfera, é o estúdio onde Frida pintava. Uma placa
na parede confirma o pressentimento: todos os móveis, com estantes de livros,
cavalete, espelho, estão ali exatamente como no passado. Vemos os pincéis e as
tintas (guardadas em frascos de perfume), tudo paralisado numa expectativa
inútil – e a cadeira de rodas, um corpete que Frida usou, depois de várias
cirurgias... O ateliê vibra de luz e dor, com janelas abertas para o jardim.
A essa altura do
percurso, passamos pelos quadros e desenhos famosos, vimos a lareira que Diego
Rivera mandou construir para a sala principal e descobrimos um acervo de
ex-votos pintados em chapas de alumínio, que se mandava fazer pelo alcance de
uma graça. Frida colecionava essas relíquias de arte popular, assim como também
guardava inúmeras bonecas numa escrivaninha. Cada quarto estava repleto de
gente, turistas lentos e silenciosos, provavelmente tão impressionados quanto
eu. Porque é quase um ato profano, ingressar na intimidade doméstica de quem se
admira e não se conhece – ainda mais em outra época, póstuma. Frida não tem
como fechar as portas, defender-se do olhar invasivo de estranhos que sondam
sua existência talentosa e trágica. Sua presença ronda os objetos que lhe
sobreviveram, está fragmentada na memória de todas estas peças – mas ao mesmo
tempo se distorce, com a lojinha de souvenirs e a escultura dela e Diego
como esqueletos, num senso de humor bizarro. São as exigências do turismo,
dirão alguns, e eu não posso negar. Estes elementos lembram que a Casa Azul,
afinal, não é mais uma casa...
Talvez o verdadeiro
refúgio de Frida, o núcleo onde ela ainda se mantém discreta e preservada,
esteja no último quarto. Em meio à mobília e tantos acessórios de decoração,
sobre uma mesa está sua urna funerária, em formato de sapo. Os antigos mexicas acreditavam que este animal tinha
comunicação direta com o inframundo, por sua capacidade anfíbia – mas há outra explicação
válida. Diego Rivera, marido de Frida, também era conhecido pelo apelido de sapo,
por sua aparência gorda, de olhos saltados. Para as cinzas de uma mulher que
viveu sempre desconfortável no próprio corpo, não pode haver descanso melhor que
uma urna no formato do homem que ela amava.
Tércia
Montenegro (escritora, fotógrafa e professora da UFC)
* Crônica publicada hoje no jornal O Povo. Disponível também no site respectivo.
Desse olhar invasivo ela talvez nunca se defendeu totalmente. Talvez até invadia ela mesma e compartilhava, então a forte leitura e tradução era inventada por quem via..!
ResponderExcluirAdorei, Tercinha!
Um beijo, K.