OS MISTÉRIOS
Todo criador de uma
obra artística tem diante de si inúmeros componentes secretos por desvelar.
Isso ocorre no instante decisivo de uma fotografia, que surge como num milagre
(quase do mesmo modo com que surgem as palavras, para o laço do texto
literário). Ocorre também na forma escondida sob a matéria-prima da escultura
ou da tinta, ou nos sons ainda não modulados em música, nos movimentos que
depois se transformarão em dança... Em qualquer arte existe uma zona misteriosa,
não formulada racionalmente. Os pesquisadores constroem depois teorias e
pensamentos em torno do ofício criador: algumas dessas questões são originais,
inteligentes, científicas; outras não passam de meras curiosidades ou palpites.
Entretanto, por mais
que as reflexões se tornem interessantes, insubstituível mesmo – e relevante – é sempre
a arte. E há momentos em que se deve admitir que ela (não apenas como processo,
mas também como produto) permanece com suas áreas inexplicáveis. Uma obra
acabada não se submete a fórmulas ou expectativas, não se molda em
previsibilidades. Este é, verdadeiramente, o seu ponto singular, nunca a sua
fragilidade.
Costumo remoer tais ideias
quando, na posição de apreciadora, caio na tentação de classificar meus
sentimentos ou juízos diante de um espetáculo, uma pintura ou um filme. A
tendência racionalizante é o grande vício humano, e eu tento experimentar às
vezes o caminho contrário, de um olhar inocente, um contato que seja pura
fruição. Ora, esse exercício tem me alertado para a necessidade de descartar
explicações artísticas inclusive para as obras que tento fazer.
Sinceramente, nunca
escrevi ou fotografei com o que se pode chamar de postura técnica. A paixão me
domina, na hora de criar. A “frieza” profissional é posterior, no trabalho com
diferentes versões, revisões, escolhas – e é óbvio que essa etapa é
importantíssima, para amadurecer e consolidar o que se pretende. Entretanto, mal
o processo termina, já me dedico a um novo projeto, um outro arrebatamento. A
incerteza desse percurso é, talvez, o traço mais atraente e vertiginoso, aquilo
de que não abro mão – e jamais abrirei.
A teoria pode ter
prestígio e interesse para certas horas ou finalidades, mas somente o impulso
prático inventa desafios. Quando um pensamento ou estilo estagna, isso pode
parecer confortável, à primeira vista. Dá a impressão de um objetivo alcançado
– mas essa é uma ilusão nociva. Torna-se estéril todo artista que adota uma
fórmula ou molde para encaixar produtos autômatos, livres de dúvida e
sofrimento criador. Da mesma forma, para o público, perde-se o impacto, quando
se tenta substituir uma obra por sua intencionalidade. A velha pergunta sobre
“o que o autor quis dizer” esconde, em nome de um simplismo tranquilizador, a
mutilação de todas as riquezas que não podem ser traduzidas ou expressas a não
ser daquela maneira que o autor adotou.
Estou convencida de
que, no território das reflexões, nada é mais danoso que um raciocínio fechado,
cem por cento correto – assim como, em arte, nada é mais descartável que uma obra
sem mistérios.
Tércia
Montenegro (crônica publicada hoje no jornal O Povo)
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