LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Sobre judeus e burocratas


De uns tempos para cá, seja por simples coincidência ou por conspiração divina, praticamente todo livro que leio aborda o tema do nazismo. Essa grande convergência começou forte com As Benevolentes, acho - e desde então foram diversos títulos, passando pela recente biografia da Clarice e, agora, pelos quadrinhos de Art Spiegelman. Provavelmente, o fenômeno de difusão desse tema é mundial (mas eu me pergunto porque justo neste momento, e não uma geração antes, por exemplo, o tapete foi levantado). Há de existir um motivo político ou histórico para isso, mas antes de tudo há essa curiosidade mórbida que nos caracteriza como humanos. Por que somos tão atraídos pelas desgraças alheias? Para, egoisticamente, tranquilizarmo-nos: isso já dizia Sontag, no seu Diante da dor dos outros.
Funciona. Ler os relatos dos campos de concentração - quadrinizados ou não - minimiza qualquer problema. Passamos a valorizar a comida, a cama e o banho, o simples ato de abrir uma janela ao sol. Esse é o ponto positivo de tais leituras, e agarro-me a ele - mas não posso ignorar o lado negativo, que sempre pulsa, e neste caso consiste na pergunta: O que leva alguém a se desumanizar? Não há resposta simples ou única para isso, mas se me questiono a respeito do que tornou possível a existência do nazismo, num século supostamente moderno ou livre da superstição de caça às bruxas, vejo dois pontos iniciais: a vaidade e a burocracia. Quando alguém se sente poderoso, põe-se a criar ritos, hierarquias ou papelada que tem de ser seguida insanamente. Os tais "exímios seguidores" vão se tornando mais e mais arrogantes por participarem de um sistema - e isso idiotiza, dessensibiliza e, por fim, justifica qualquer chacina.
Parece uma opinião exagerada? Juro que não é. Observe qualquer burocrata, e você verá que, para esconder seus atrofiados neurônios, o indivíduo adota uma postura de orgulho tedioso: anda e fala ao telefone com lentidão, julgando-se sábio e ponderado - mas a vagueza não chega nem a ser um esperto disfarce; é, antes, consequência de sua opacidade: nunca acelera porque não tem ideias que permitam a rotação adequada. Envaidece-se, então, da pilha de processos que ocupa sua mesa, como se um volume equivalente ocupasse o seu cérebro. E essa vaidade logo se transforma num poder perigoso, se o burocrata vê alguém escapando de seus artículos - alguém que é livre, louco ou artista, ou qualquer equivalente. A represália nasce, aqui, da incompreensão ou da inveja - não importa.
O que importa mesmo é que os burocratas nunca vencem. Os nazistas foram burocratas ao máximo, em seu perfil militar e em sua necessidade de seguir um líder. Não exterminaram os judeus, por mais que tenham se esforçado. E hoje, ainda há muito esforço de correntes ideológicas para engessar (burocratizar) a humanidade. Mesmo assim, há os que permanecem livres, ainda que num diminuto território. Esses são os que criam, inventam o que querem, e podem até recontar a História como ela seria, se em vez de burocratas houvesse mais rebeldes, mais anônimos corajosos.
Não é isso o que o Tarantino faz, no seu Bastardos inglórios? Outra obra sobre judeus, mas bem diferente da "papelada"...