LIVROS E BICHOS

Este é o blog da Tércia Montenegro, dedicado preferencialmente a livros e bichos - mas o internauta munido de paciência também encontrará outros assuntos.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Carta a Cecília Meireles

Minha querida Cecília,

Escrevo-te pela primeira vez, como se fosses íntima, bem próxima de minha convivência. Sobretudo escrevo-te como se pudesse ter uma resposta, fingindo não dar conta de teu desaparecimento, há mais de quatro décadas. Apenas a literatura é capaz de milagres dessa natureza.

Lembro que li pela primeira vez teus versos quando era criança – brinquei com as rimas de Ou isto ou aquilo, aprendendo que a palavra é flexível. Depois, passei para as crônicas de viagem e para a vaga música de outros poemas. Visitei os inconfidentes com teu Romanceiro, participei de retratos, canções e tantos naufrágios. Sim, minha querida, talvez os naufrágios tenham sido o meu principal encanto. Eu, que nunca poderia viver distante do mar, encontrei a perfeita ressonância naqueles acordes de água e pedra.

Mais tarde, curiosa de outros detalhes, descobri coincidências entre nós – o magistério, o misticismo, a solidão indispensável. Aprendi com tua história que a morte pode ser suavemente celebrada. Contigo, visitei o Oriente e encontrei tua irmã de poesia, Gabriela Mistral (aliás, Lucila Godoy Alcayaga). Bisbilhotei tua correspondência com o Mário de Andrade e tive a delícia dos segredos encontrados. Acompanhei um pouco tua rotina, a paixão pelo folclore, por flores e silêncio. Também conheci tuas filhas e netos, palmilhei muitos de teus passos – tudo pelo velho milagre da literatura.

É por isso, Cecília, que hoje arrisco escrever esta carta: para que saibas que não compreendo inteiramente os mistérios que já desvendaste, mas, assim mesmo, ler teus versos me tranqüiliza. Recordo que o instante existe, que a vida agora está completa – nada mais é necessário. Talvez eu apenas queira de vez em quando contemplar tua foto, pensando na verdade de teus olhos claros. Olhinhos de gato.

Beijos da sempre leitora

Tércia Montenegro / Fortaleza, 12 de dezembro de 2007 (publicado pela primeira vez no jornal O Povo)

Um comentário:

  1. Cecília é encantadora. É incrível como ela sempre se enquadra em qualquer produção minha de trabalhos da faculdade, sempre cabe numa epígrafe. Ela soube ir a fundo, soube "ser", soube calar. Soube adentrar até os caminhos transparentes!
    É digna de ser espionada mesmo... e a qualquer instante! Você provou documentando e assinando que foi uma legítima espiã dessa querida (rs). Percebe, então, o sentido real e ao mesmo tempo mágico deste blog..? :)

    P.S.: É, Cecília, "e ficaste só tu, que é eterno". Atrevo-me a dizer: ficou TUDO ISSO que veio do teu sentir! (Que, claro, é eterno).

    Beijo,
    K.

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